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A memória contra o negacionismo

Pablo Almada[1]



Fonte: Canvas.


Os meios virtuais são fundamentais para informar, explicar e prevenir a pandemia. Por outro lado, no mundo da pós-verdade, a própria pandemia é colocada sob suspeita. E com ela, diversas Fake News se transformam em um grande exército mercenário, que age em favor do vírus e contra a humanidade. Podemos então considerar que conforme avança o vírus também avançam as suas inverdades (ou pós-verdades)? Estaríamos sendo alarmistas caso soubéssemos que teríamos que nos empenhar (governos, autoridades sanitárias, população) massivamente para o controle da pandemia, mesmo desconfiando dessa eficácia? E, sabendo disso, do que nos interessa produzir e cultivar ainda mais Fake News e desinformações?

A palavra que, associada ao Coronavírus, potencializa a sua letalidade é, certamente, pós-verdade. Antes, pouco nos importávamos com o significado das palavras e seus efeitos na sociedade. Entendíamos que os significados podem ser ressignificados, mas dificilmente conseguiríamos estabelecer quais eram esses limites para a produção de sentido. Tampouco estimaríamos como a própria humanidade, ao invés de compreender os riscos e danos, desafiá-los-ia sistematicamente. Imagens da pandemia como as da Itália e dos Estados Unidos provavelmente se repetirão em outros países. Testes, remédios, controles e isolamentos são medidas que necessitam de aplicação, mas também postulam outros desafios: conseguiríamos compreender, de fato, qual o grau de nossa prudência e da prevenção?

Desde o início dos anos 2010, diversas pesquisas na área de medicina e biologia começaram a incorporar uma palavra estranha ao vocabulário destas Ciências: denialism ou negacionismo. Os avanços dos estudos sobre o vírus HIV têm sido o principal elemento de polêmica e de deslocamento do debate, do mundo público e científico para o mundo da crença e da religião. Os negacionistas científicos seriam aqueles que, mediante as evidências científicas, preferem relativizar avanços e problemas, ou inserir questionamentos simplórios e anticientíficos, chegando a confundir os especialistas e o público leigo. Ainda, o negacionismo científico, minimizador dos problemas, cético dos avanços, sedento por resoluções fáceis, tem encontrado um público cada vez mais amplo. Podemos encontrar diversas referências nas redes sociais, em especial no YouTube, com vídeos comentados, polêmicas e mitos.

Negar a ciência, como feito pelos terra-planistas, por exemplo, é retroceder a um estágio pré-newtoniano da vida humana, onde a relação do Homem com a Natureza não se explica por um sistema cognitivo racional, mas pelas paixões, pela procedência e interseção divina, por um senso de descrença das evidências. Com esse retrocesso científico, os efeitos na política são cada vez mais perversos. Se há um retorno pré-iluminista da filosofia, há também uma política que se constrói nas margens do republicanismo e da democracia contemporânea. Quando Foucault questionava, com Kant, “o que é o Iluminismo?”[2], entendia que as luzes eram um acontecimento: estaria sendo exigida uma atitude de modernidade, em seu sentido histórico, que permitiria, entre outras coisas, imaginar o presente do modo como ele não é. Ou seja, a preocupação de Foucault é com o sujeito que pode construir-se a si próprio como autônomo. Porém, essa é uma noção que somente pode ser válida quando nos sujeitamos à crítica permanente de nós mesmos. Quando não, retomamos à menoridade identificada por Kant, sem que seu limite seja um desafio de superação.

O momento presente é a inanição. Tomado por representações e ficções, pela mercadorização das relações sociais e pela criação de suas fantasmagorias, o sujeito autônomo se desfaz. Diluída e perdida em labirintos de informações, a imaginação torna-se direcionada à integração e cooptada pela produção de não verdades, ou de pós-verdades. A aceitação da ciência e o debate científico e comunitário transformam-se em debate contra a ciência. O mesmo vale para a política: para ela, é necessário também mudar a história, vê-la como verdade imutável produzida intencionalmente por grupos, e, para que não haja vencedores e vencidos, apaga-se suas evidências. Sutilmente, a imaginação do presente impulsionada ao futuro, da qual falava Foucault, vai desaparecendo, porque se apaga o passado e se inabilita de sentido o presente.

Não há medida que não possa ter contramedida, não há verdade que não possa ter uma pós-verdade: e esta passa agora a ser, portanto, a própria verdade. Nesse universo sem passado, os fatos, os discursos, as leis, as evidências e as descobertas são identificadas como a tentativa de imposição de uma visão de mundo, contrária a determinados valores sagrados, mas que identifica exatamente quais são. “O tempo passado é vivido da rememoração”, diria Walter Benjamin[3], não sendo nem vazio, nem homogêneo. A memória que entra em contato com o tempo presente é justamente o que permite a recusa das falsas verdades, é aquilo que desmascara falsos significados e nos coloca, novamente, diante da realidade, pois, assim, podemos saber como esta foi construída e quais são (ou serão) os seus sentidos e continuidades para o tempo presente.


[1] Sociólogo e Pesquisador. Doutor em Democracia no Século XXI pela Universidade de Coimbra. pabloera@gmail.com.

[2] Cf. Foucault, Michel. “O que são as Luzes”. In: Foucault, M. Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 335-351. [3] Cf. Benjamin, Walter. “Sobre o conceito de História”. In: Benjamin, W. Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 232.

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