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Paulo Freire e a Educação do Campo: algumas conexões

Neste ensaio, o professor e pesquisador Adelar João Pizetta articula a práxis da Educação do Campo aos pressupostos teórico-pedagógicos de Paulo Freire, enfatizando três dimensões consensuadas nesse contexto educacional: o protagonismo dos movimentos populares do campo, um novo Projeto de Educação e Escola e a vinculação com a construção de um Projeto Popular para o Brasil. O autor destaca duas ideias-forças da pedagogia freireana que se conectam com a Educação do Campo: a não neutralidade do ato pedagógico e a pedagogia como ato coletivo na luta pela libertação. Assim, Pizetta defende a apropriação da filosofia de Freire como um subsídio potente às práxis pedagógicas, especialmente no âmbito dos movimentos populares.


Fonte: Pexels



Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.

(PAULO FREIRE)



Há diversas e importantes maneiras de celebrar o centenário de nascimento do Patrono da educação brasileira no ano de 2021; todas elas com intencionalidades e objetivos oriundos das perspectivas de seus organizadores. No entanto, algo em comum é evidente: em um momento histórico em que seu legado vem sendo ferozmente atacado pelos grupos fascistas, neofacistas, autoritários que se encontram no comando da nação, torna-se ainda mais necessário estudá-lo e defendê-lo.


Particularmente, penso que a melhor maneira de homenagear Paulo Freire em seu centenário consiste em se apropriar da sua filosofia de educação e recriá-la como algo potente nas práxis pedagógicas que estamos desenvolvendo nas escolas, nos espaços acadêmicos e fundamentalmente no seio dos movimentos populares, locus fértil para uma educação emancipatória e libertadora. Nas linhas que seguem, pretendo tecer alguns fios que se entrecruzam no âmbito da Educação do Campo articulado com postulados teóricos-pedagógicos de Paulo Freire na perspectiva de uma “pedagogia do oprimido”, isto é, uma pedagogia da desopressão.


Do ponto de vista histórico, a educação do campo emerge no Brasil, no final século XX, através das lutas materializadas pelos/nos movimentos populares, principalmente a partir das práticas educativas desenvolvidas no âmbito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em escolas localizadas em acampamentos e assentamentos de todo o Brasil. Essa educação surge como contraposição (contrário e não simplesmente oposição) ao modelo de organização e produção hegemônico na agricultura, orientado e de acordo com os interesses do grande capital, cujo objetivo principal é a produção de mercadorias para a obtenção de lucros.


Ao nosso entender, partindo dessa condição fundante, a educação do campo vai se estruturando articulada a três dimensões consensuadas em seu nascedouro: a) O protagonismo dessa educação está vinculado à existência, organização e luta dos movimentos populares do campo, uma vez que esses sujeitos coletivos incidem sobre a educação, levando em consideração a cultura, as condições de produção material da vida, as necessidades, os sonhos e aspirações de uma nova sociedade; b) Ser parte de um novo Projeto de Educação e de Escola que cumpra o papel de mediação, fortalecendo processos de transformação no meio educacional e social; c) A necessária vinculação dessa práxis educacional com a construção de um Projeto Popular para o Brasil no qual a agricultura assuma uma lógica de desenvolvimento social e humano e não apenas de intenções do lucro e da exploração destrutiva.


Freire em sua práxis teórica-pedagógica nos lega algumas ideias-forças que se conectam com a perspectiva da educação do campo. Em primeiro lugar ao afirmar que “Todo ato pedagógico é um ato político”, explicita algo incorporado por essa educação, no sentido de que não há possibilidades da neutralidade, nem do ponto de vista do/a educador/a, como também no que se refere à educação de maneira geral. Na práxis pedagógica, consciente ou inconscientemente, assumimos um lugar, optamos por determinadas concepções, ideias em detrimento de outras, nos vinculamos a algum projeto educacional e social de maneira que não há separação entre o cidadão e o educador. O que somos na sociedade também somos na escola. Freire nos adverte que não é possível uma educação libertadora sem uma profunda “intervenção no mundo”. Na concepção de Freire, a educação enquanto ato de conhecimento é também e por isso mesmo um ato político. No momento mesmo em que a gente se pergunta em favor de quê e contra o quê, estamos tomando posição, desse modo, do ponto de vista educacional, não há como admitir uma “neutralidade”. Portanto, de maneira aberta e explícita, a educação do campo é parte do projeto de agricultura camponesa que enfrenta, no discurso e na prática cotidiana, a lógica perversa do modelo do capital.


Uma segunda ideia potente está na afirmação: “Todo ato pedagógico é um ato coletivo”. Por isso, segundo Freire, a Pedagogia do Oprimido é a “pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação”, em um contexto cujos educadores e educandos, co-intencionados à realidade, se encontram na tarefa de juntos desvelá-la, criticamente decifrá-la, para intervir nela de forma transformadora e revolucionária. A libertação será obra dos explorados, ou, não haverá emancipação humana. Dessa maneira, a Pedagogia do Oprimido é aquela elaborada, forjada com ele e não para ele. Vejam que a educação do campo não é a educação para os povos do campo (Sem Terra, quilombolas, pequenos agricultores, ribeirinhos, indígenas, pescadores, etc.) mas, a educação dos povos do campo em que o protagonismo, o vínculo e a autonomia sejam de fato e na prática, dos camponeses. Não é uma educação para eles, mas, uma educação deles. Essa é uma posição política que possui desdobramentos nas diferentes dimensões do que fazer pedagógico: currículo escolar, trabalho coletivo, gestão e organização do trabalho pedagógico na escola e para além dela, autonomia e capacidade de criação de novas práxis coerentes com os propósitos de uma educação emancipatória.


Nessa direção, destaco uma terceira ideia importante acerca da metodologia da investigação ao tratar dos “temas geradores” como parte integrante do currículo das escolas do campo demandando um empenho coletivo, não apenas no momento da investigação temática que advogamos, mas também, na educação problematizadora que defendemos. É o esforço de propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes. Necessariamente está presente a dimensão dialética da totalidade. Desta maneira, a análise crítica de uma dimensão significativo-existencial (contradições da realidade) possibilita aos indivíduos uma nova postura, também crítica, em face das “situações limites”, apontando para a perspectiva do “inédito-viável”.


Outra dimensão relevante na perspectiva político-pedagógica proposta é, ao tomar consciência que há possibilidades inéditas na realidade, ainda não claramente conhecidas e vividas, mas sonhadas e quando se torna um ‘percebido destacado’ pelos que pensam utopicamente como práxis histórica, os envolvidos compreendem, então, que o problema não é mais um sonho, mas, uma possibilidade que se torna realidade. Assim, o “inédito-viável” é a materialização historicamente possível do sonho sonhado.


Por último, mas não menos importante, destaco a importância do diálogo e da dialética como instrumentos mediadores nos processos educativos. Diz Freire: Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. Dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que também é práxis, é transformar o mundo (ação transformadora). Por isso, dizer a palavra não pode ser um privilégio de alguns, mas direito de todos. Portanto, o diálogo (como categoria fundante da pedagogia libertadora) é esse encontro dos homens/mulheres mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando na relação eu-tu. Não há também, diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não deve ser privilégio de alguns eleitos, mas, sim, direito de todos os homens e mulheres. O diálogo não pode existir sem um profundo amor pelo mundo e pelos homens. Por isso não há diálogo sem humildade, pois, transformar o mundo, ato pelo qual os homens re-criam constantemente este mundo, não pode ser um ato de arrogância. Como não há, tampouco, diálogo sem esperança, pois a esperança está na raiz da inconclusão dos homens. Contudo, a esperança não consiste em cruzar os braços e esperar. Na medida em que os povos do campo se organizam e lutam, estão amadurecendo para a esperança. E, não há diálogo verdadeiro, se não há nos sujeitos um pensar verdadeiro, um pensar crítico, um pensar a partir das contradições da realidade objetiva em que vivem e se organizam e lutam por sua transformação, tanto no campo como nas cidades. Segundo Freire, não há dicotomia entre diálogo e ação revolucionária. Não há uma etapa para o diálogo e outra para a revolução. Ao contrário, o diálogo é a própria essência da ação transformadora.


O contexto atual nos traz desafios enormes no âmbito social e educacional, relacionados aos povos do campo, nos colocando diante de “situações limites” importantes. No entanto, são nessas contradições da realidade que vivem tanto a capacidade extraordinária de resistência e enfrentamento dos explorados, como também os “inéditos viáveis” que permitem a continuidade da abertura das veredas por onde passam as novas práticas pedagógicas, políticas e humanas, articuladas nas entranhas dos movimentos populares. Esse caminhar com o legado de Freire requer um “fazimento” de uma educação do campo, que seja no discurso e na prática, Libertadora! Viva Paulo Freire: educador do povo!




COMO CITAR ESTE ARTIGO:


PIZETTA, Adelar João. “Paulo Freire e a Educação do Campo: algumas conexões”, em Revista Ponte, v. 3, n. 1, mai. 2023. Disponível em:




Adelar João Pizetta possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é Professor na Universidade Federal do Espírito Santo - UFES/CEUNES, em São Mateus, no Departamento de Educação e Ciências Humanas (DECH) e Colaborador/Educador da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), atuando principalmente nos seguintes temas: Cultura, Filosofia, Filosofia da Educação, Sociologia, Sociologia da Educação, Educação Popular, Educação e Movimentos Sociais, Currículo, Formação de Professores, Política e Planejamento Educacional, Questão Agrária, Educação do Campo e Teoria da Organização.




 

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