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Billions: um aceite para a identidade

Neste ensaio, o professor e pesquisador Paulo Caetano apresenta uma reflexão sobre a presença de identidades desviantes em séries de streaming, debruçando-se em uma análise de uma cena da segunda temporada da série Billions. Aliando os Estudos Literários à Economia, o autor parte da hipótese de que a inserção de identidades dissidentes em posições de destaque nas produções estéticas antes dominadas por uma hegemonia masculina e heteronormativa emerge da articulação de uma tríade: Modernidade, Capitalismo e conquistas dos movimentos sociais.


Fonte: Pexels



1. Transformações que impactam


Uma marca recorrentemente atribuída à Modernidade, nos Estudos Literários, advém da leitura que Walter Benjamin (1989) faz de Charles Baudelaire (2012), principalmente em “A uma passante”. A correspondência entre olhares no poema está fadada a não se desenvolver devido àquilo que Paris se torna: experiência de dispersão. Os olhos do homem contemplam brevemente os olhos da mulher. Ela, por sua vez, passa, vai-se embora, porque assim precisa fazer; a cidade de então a impele. Assim se instala a impossibilidade do encontro efetivo. A noção de comunidade e de afetividade se transforma com o advento das grandes cidades. O provincianismo não dá conta da intensificação do sistema socioeconômico: o aumento do número de fábricas não rende “apenas” mudança na paisagem parisiense; a constituição dos indivíduos se altera, isto é, a massificação tende a homogeneizar os trabalhadores, os relógios tendem a acelerar a rotação interna.


“A rua em torno era um frenético alarido”, verso baudelairiano que abre “A uma passante”, na tradução de Ivan Junqueira, sugere a multiplicidade de estímulos que brotam da cidade a crescer. Esses estímulos (sonoros, visuais, olfativos...) atravessam o indivíduo, agora impactado por esses vetores. O basbaque com que a voz poética contempla a beldade efêmera se dá pelo arroubo da beleza, mas também pela estagnação que sofre o sujeito hiper solicitado – impossível ao aparelho psíquico fugir às inúmeras solicitações sensoriais que lhe tomam de assalto. Um embotamento parece inevitável.


O texto mais notório de Benjamin sobre isso é “Experiência e pobreza”, no qual o filósofo sugere que o mutismo vivido pelos soldados, que voltavam da guerra, era uma resposta do aparelho psíquico a esse evento paradigmático acerca do que é mudança. Esta pode ser exemplificada na morte de integrantes do mesmo batalhão, na destruição de prédios, dentre outras consequências arrasadoras da guerra. Essas mudanças, drásticas e trágicas, para jovens interioranos, como era o caso citado, são impactantes, e vêm como hiper estímulos para aqueles que haviam lidado pouco com alterações, tendo em vista que o lugar de onde vinham era simbolicamente estável (a tradição e a religião eram determinantes) e visualmente constante (o capitalismo ainda não havia penetrado incisivamente). Frente a essas mudanças, tão inúmeras quanto repentinas, ocorre uma experiência de choque, no dizer benjaminiano – a resposta é o silêncio, o nada diante do excesso.


2. Revisão do que era


Se a Modernidade vai ter a mudança e a interrupção como um de seus signos, a chamada Pós-modernidade tangencia, de certo modo, tal imagem, ao propor alterações progressivas sobre aquilo que supostamente estava cristalizado. A revisão de grandes narrativas é tocada por diferentes filósofos que orbitam Maio de 68. A grosso modo, seria possível elencar, a título de exemplo, quase verbético, a revisão que Jacques Derrida faz a partir da ideia de signo como construção arbitrária, que Gilles Deleuze faz do complexo de Édipo como estrutura psíquica paradigmática, e Michel Foucault faz da sexualidade como tecnologia social.


O autor de "História da sexualidade", que melhor se articula ao objeto a ser apresentado por este ensaio, vai ensejar uma vasta abertura de pesquisa na História, Filosofia, Estudos Literários, dentre outros, fazendo com que papéis outrora fixos (como o que seria ser mulher ou homem) passem a ser revistos. Colabora para isso também, além dos esforços pós-estruturalistas, a luta do movimento Feminista e a reflexão do movimento homônimo enquanto corrente crítica.


O que aí passa a ser objeto de reflexão, na academia, chega, paulatinamente, a ser revisto também na indústria cultural e no dia a dia de pessoas que estão sistematicamente fora de tais discussões. A Literatura Comparada, enquanto disciplina, e os Estudos Culturais, enquanto corrente crítica, ensejam o encontro de objetos de latitudes e sistemas semióticos diferentes.

Diversas séries de streaming têm trazido no elenco principal personagens que fogem àquilo que seria o hegemônico: o protagonismo na figura de heterossexuais brancos. Assim, bissexuais, não-binários, veganos... são alguns traços desses “novos” personagens em produções recentes[1], evidenciando o que parece ocorrer progressivamente em contextos mais cosmopolitas: a convivência com o diferente. Isso enseja uma sociedade mais plural, na qual se constata que perfis distintos podem desempenhar papéis vários.


No caso da Netflix, vê-se que produções como Sex Education[2] e Atypical[3] abordam o tema de modo explícito, chegando às vezes a serem didáticos os enredos. Há, todavia, casos mais sutis em que a trama não gira em torno desses personagens, nem dos respectivos problemas identitários com que eles têm que lidar, como é o caso, por exemplo, de Black Mirror[4] e Billions[5]. A primeira concerne, basicamente, a episódios distópicos em que a tecnologia é instrumentalizada para a realização de perversões, tendo, principalmente na última temporada, a predominância de grupos minoritários (mulheres e negros, no caso) como protagonistas. Já Billions apresenta personagens com comportamentos não sexualmente hegemônicos. Um dos protagonistas, o promotor Charles “Chuck” Rhoades (Paul Giamatti), é um homem de visual típico (cavanhaque, terno, pasta, calvície e barriga saliente) que eventualmente se mostra adepto do sadomasoquismo. Seria possível citar outros personagens nessa toada, como o advogado Hall (Terry Kinney) que se interessa por voyueurismo e nanismo. Entretanto, este ensaio pretende se deter mais sobre uma figura mais contundente dentro da trama, Taylor Amber Mason (Asia Kate Dillon).


Taylor entra no início da segunda temporada. É estagiárie, como a tradução diz, de Mafee (Dan Soder), um dos traders, e se destaca por conseguir fazer o chefe imediato lucrar mais, com soluções eficientes e inesperadas. Essa é a principal característica de Taylor na série, a inteligência, a qual é seguida por certa excentricidade visual e comportamental, comparativamente àquilo que predomina no ambiente corporativo. Neste, em Billions, costuma predominar nos homens comportamento tido como másculo (camisas sociais largas e discretas, bem como elogio à virilidade), enquanto que para mulheres costuma predominar uma elegância sutil e sensual (tailleurs cinturados e comportamento discreto). Taylor, por sua vez, difere-se por usar roupas que não marcam o corpo, ter cabeça raspada, falar com ar impassível.

Essa aparente impassibilidade ao se colocar, depreende-se, vem de uma abstenção para com o típico caráter voraz que o mercado especulativo ostenta e demanda(ria). Num dos primeiros momentos em que tal figura se coloca (no episódio número 2, da 2ª temporada, aos 9min 20seg), os pronomes são informados ao CEO da empresa:


– Olá. Meu nome é Taylor. Meus pronomes são “ile” e “dile".

(...)

– Sou estagiárie. [6]


Essas informações até então novas na empresa são recebidas com rápida decodificação. O CEO, também marcado pela inteligência, escuta isso, demora algo por volta de dois segundos, e então lhe concede dois minutos para expor um plano que ile tinha na manga. A proposição é arguta para derrubar um concorrente, e chama a atenção do chefe. Essa cena é o ápice da exposição do que seria a excentricidade de Taylor. Todavia a série apresenta isso, e tal caráter minoritário é rapidamente apreendido pelo chefe, seja por um ato de respeito à identidade alheia, seja por indiferença e/ou pragmatismo. Pode ainda haver uma moral flexível por parte de Axe (como quando lucrou com o 11 de setembro e ao adiantar a morte de uma provável testemunha que deporia contra ele), dando a entender que o que lhe for conveniente seria válido. Tal apreensão ligeira por parte do CEO sugere que ele teria alta capacidade adaptativa e/ou indiferença para com aspectos pessoais, como que pairando sobre questões existenciais ou morais, importando essencialmente o resultado, ou seja, o ganho para a empresa. Se outrora era buscado um perfil voraz, tido como masculino, o padrão é quebrado, dando a entender que o capitalismo é altamente mutável. Aberto àquilo que produz e rende; fomentador de novidades, o sistema socioeconômico provoca mudanças, bem como aceita-as. “Tudo que é sólido desmancha no ar”, a frase paradigmática que Marshall Berman parafraseia do "Manifesto do Partido Comunista", tem como um de seus referentes alusivos este trecho:


A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção — ou seja, as relações de produção —, isto é, o conjunto das relações sociais. A manutenção inalterada do velho modo de produção era, ao contrário, condição primordial para a existência de todas as classes industriais anteriores. A transformação contínua da produção, o abalo ininterrupto de todas as condições sociais, incerteza e movimento eternos, eis aí as características que distinguem a época burguesa de todas as demais. Todas as relações sólidas e enferrujadas, com seu séquito de venerandas e antigas concepções e visões, se dissolvem; todas as novas envelhecem antes mesmo que possam se solidificar. Evapora-se toda estratificação, todo o estabelecido; profana-se tudo que é sagrado, e as pessoas se veem enfim obrigadas a enxergar com olhos sóbrios seu posicionamento na vida, suas relações umas com as outras. (Marx; Engels, 2012, pág. 47).

O parágrafo acima é parte da oposição que os autores de "Manifesto do Partido Comunista" fazem entre proletários e burgueses. Estes seriam figuras a oprimir aqueles, cabendo apenas, ao tempo e a esses atores, a mudança de como praticar a violência. Entretanto sem se valer do esquematismo do trecho, ao trazê-lo para os dias atuais numa relação trabalhista sem vínculo empregatício e de alto ganho, como é o caso dos traders em Billions, a citação joga luz sobre o aspecto que vem sendo ressaltado neste ensaio desde o início: o caráter mutável do Capitalismo, seja para promover transformações (destruições e ruínas, como parte da crítica coloca), seja para adotar a diferença, desde que ela seja mercadoria ou entre na produção.


Digna de nota ainda é a cena do episódio anterior em que Taylor, na sua primeira aparição, já se mostra com dicção blasé, ainda que firme, e se diz vegane. Brincando com estereótipo de que os adeptos desse estilo de vida têm visual alternativo, ile nega a característica ao dizer para Mafee que não seria vegane, segundos depois em que ele lhe trouxera um prato com tofu. Logo em seguida e estagiárie desfaz a brincadeira, informando que, sim, está nesse estereótipo – mas que poderia não estar.

3. Conclusão para ser transformada


Este ensaio é parte de um esforço a ser institucionalizado como projeto de pesquisa em 2024. A proposta é ver a constituição de personagens desviantes, e como essas subjetividades são cooptadas ou incluídas nas tramas. Daí, especula-se, vêm diversos vetores, os quais ensejam ou vislumbram a diversidade: Pós-modernismo, Pós-Estruturalismo, Feminismo, Estudos Culturais. Além das correntes críticas como agenciadores, seria possível dizer que o sistema socioeconômico, numa faceta atual, abraça a diferença (por sabê-la rentável? Por ter apreendido ganhos sociais? Por ensejar oportunidades?)?



[1] Sobre o protagonismo de mulheres e negros na última temporada de Black Mirror, vale ver o artigo “O extrativismo identitário em Black Mirror, de Moysés Pinto Neto, bem como o Pensar a Netflix, livro organizado por Bruno Cava e Murilo Corréa.

[2] Criação de Laurie Nunn, 2019, 3 temporadas. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/80197526

[3] Criação de Robia Rashid, 2017. 4 temporadas. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/80117540

[4] Criação de Charlie Brooker, 2011. 5 temporadas. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/70264888

[5] Criação de Brian Koppelman, David Levien, Andrew Ross Sorkin, 2016. 5 temporadas. Disponível em https://www.netflix.com/br/title/80067290

[6] No original, em inglês:

– Hello. My pronouns are “they”, “theirs” and “them”.

– I’m an intern.



COMO CITAR ESTE ARTIGO:


CAETANO, Paulo. “Billions: um aceite para a identidade”, em Revista Ponte, v. 3, n. 1, mai. 2023. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/billions-aceite-identidade




Paulo Roberto Barreto Caetano é professor de Literatura e Outros Sistemas Semióticos na Unimontes, doutor em Teoria da Literatura pela UFMG. Autor de Sul do chão (contos, 2010), Achados avulsos (2019, ensaios).




 

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Referências bibliográficas


Baudelaire, Charles. (2012). As flores do mal. tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.


Benajmin, W. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. Tradução de Hermerson Alves Baptista Obras escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.


Benjamin, Walter (1996). Experiência e pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense.


Berman, Marshall. (2007). Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioratti. São Paulo: Companhia das Letras.


Cava, Bruno; Cocco, Giuseppe. (2020). A vida da moeda: créditos, imagens, confiança. Rio de Janeiro: Editora Mauad X.


Deleuze, Gilles; Guatari, Félix. (2011). O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1979). 2. ed. São Paulo: Editora 34.


Derrida, Jacques. A Escritura e a Diferença. (2002). Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva.


Derrida, Jacques. Gramatologia. (2004). Tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva.


Foucault, Michel. (2017). História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra.


Freitas, Marcus Vinicius de. (2011). Contradições da Modernidade: o jornal Aurora Brasileira, 1873-1875. Campinas, UNICAMP.


Neto, Moysés Pinto. (2018). O extrativismo identitário em Black Mirror. In: Cava, Bruno; Corréa, Murilo. Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política. Belo Horizonte: Editora Plácido. Disponível em https://www.academia.edu/37733239/O_extrativismo_identit%C3%A1rio_em_Black_Mirror Acesso em 14 de novembro de 2022.


Marx, Karl; Engels, Friedrich. (2012). Manifesto do partido comunista. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo: Penguin Classics / Companhia das Letras, 2012.


Sbadini, Maurício de Souza. Especulação financeira e capitalismo contemporâneo: uma proposição teórica a partir de Marx. In: Economia e Sociedade, Campinas, v. 22, n. 3 (49). Disponível em https://www.scielo.br/j/ecos/a/NJbVMkK6HNCFXVCbPMzj54v/?format=pdf&lang=pt Acesso em 14 de novembro de 2022.


Starobinski, Jean. (2011). É possível definir o ensaio? Tradução Bruna Torlay. Remate de Males. aCampinas-SP, (31.1-2): pp. 13-24, Jan./Dez. Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219 Acesso em 14 de novembro de 2022.







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