Neste ensaio, a professora e pesquisadora Ana Elisa Ribeiro propõe uma nova forma de se compreender a revisão de textos (sobretudo a revisão literária), a partir de uma "mirada rebelde". Nessa perspectiva, percebe-se o texto como um objeto potencialmente transgressor. Cabem ao revisor e à revisora, portanto, novas formas de intervenção, para além e para aquém da gramática normativa. Transgredir e deixar transgredir são competências fundamentais a esse revisor ou a essa revisora, que precisam ter um amplo conhecimento de língua e linguagens, além de saber estabelecer uma relação de bom senso com autor/a e editor/a.
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A “mirada rebelde” que proponho aqui diz respeito ao modo de ver os textos a serem revisados de maneira a permitir que, em vários casos, eles transgridam ou desobedeçam – assim, intransitivamente. Um revisor ou uma revisora que lida com textos e práticas de caráter fundamentalmente normativistas compreenderá bem uma mudança de olhar para textos que demandem novas lentes, isto é, textos que também sejam “rebeldes”, que desafiem os conhecimentos do/da profissional de revisão, solicitando intervenções de naturezas outras, para além – ou aquém – da gramática normativa. É a essa rebeldia que me refiro, em especial na relação com os textos literários, sejam eles dirigidos a adultos ou a crianças.
O que chamo de materiais rebeldes são poemas, contos, romances, narrativas cujo objetivo seja menos instrumental e mais estético.
São materiais que parecem dispensar uma aplicação convencional de regras gramaticais, textos que merecem uma análise muito contextualizada do gênero discursivo/textual, em interação também com aspectos de sua circulação e de seu contexto de produção; ou que exigem do revisor e da revisora um conhecimento de língua e linguagens tal que seja possível transgredir, ou melhor, deixar transgredir.
Não há limites para a experimentação literária. E se há revisores envolvidos nos processos de edição dessa literatura, eles também serão, provavelmente, afetados pelas necessidades ou possibilidades literárias. Os textos que se transformarão em livros de literatura ou em publicações literárias de outra natureza (jornais, revistas, sites, zines) também costumam existir em intensa relação com seus projetos visuais e gráficos, aspecto que não deveria ser desconhecido dos profissionais da revisão ou “do texto”, como alguns gostam de denominar.
Os textos literários talvez dispensem um/a profissional prescritivista de revisão e deem espaço a profissionais capazes do “desapego”, isto é, pessoas que atuem sem melindres, se forem sumamente ignoradas em suas sugestões. Aliás, profissionais que se contentem com sugestões que são apenas isto: sugestões. Caso contrário, em muitas situações, haverá desgaste, sofrimento, disputa, o que não parece necessário em uma atividade que prefiro entender como cooperativa e dialogal. Lidar com autores – na pujança do que possam ser os “autores literários” – é uma competência. Lidar com mediadores, editores, assistentes também é necessário, em especial nos casos em que está em jogo uma arte da escrita. E sugerir pode ser a melhor medida para situações de rebeldia em que o/a revisor/a deve intervir discretamente ou, de outro modo, numa condição de consultor ou de comentador. Ainda que essa discrição seja tão falsa quanto os poetas pessoanos.
Mortos e vivos
Do certo ponto de vista, ao menos duas situações de revisão do texto literário podem ocorrer ao/à revisor/a: tratar textos de autores mortos (talvez consagrados) e tratar textos de autores contemporâneos, vivos, em plena atuação na cena editorial. Cada um desses casos oferece seus desafios e produz suas demandas.
Revisar um autor consagrado morto exige delicadezas e conhecimentos sobre o texto “fixado”, uma versão “definitiva”, com decisões superficiais que podem envolver, por exemplo, ortografação atualizada. Um exemplo seria um livro publicado em edição anterior ao Acordo Ortográfico ora vigente e que terá nova edição. Há casos polêmicos, até amplamente divulgados, que dizem respeito à sensibilidade desse tipo de trabalho e de decisão.
Já as situações que envolvem autores e autoras contemporâneos/as vivos/as trazem outras questões à baila. Normalmente, essas pessoas não estão mediadas. Elas mesmas solicitam serviços de revisão, mas que, na verdade, ultrapassam uma mera correção. Trata-se do estabelecimento de um diálogo sobre a obra em produção, numa espécie de quase consultoria, que vai além de regras gramaticais, chegando a efeitos literários de grande impacto para o livro final. Autores em seus primeiros livros exigem revisões diferentes de autores experimentados, estes que já dispõem de um capital simbólico que dá a eles certo poder de barganha que pode pôr o revisor e a revisora em xeque. Em situações de edição profissional, é comum que o autor e a autora tenham a palavra final, ainda que ao revisor ou à revisora algumas intervenções pareçam imprescindíveis. É ter paciência.
Apenas para alguns exemplos que ajudam a dar concretude ao que exponho, menciono certos casos reais de revisão de textos literários, para crianças e adultos, em processo de edição. Inicio com a situação de um livro infantil publicado, isto é, que circula com texto tal como mostrado, mas que traz incômodo ao/à leitor/a em razão de uma hipercorreção perceptível. Trata-se de um livro de coleção sobre bruxas, de enredo bem-humorado, apresentando um diálogo entre a bruxa protagonista e um menino insone. Em uma conversa informalíssima entre esses personagens, o garoto pergunta à bruxa se ela o deixará em apuros ainda, ao que ela responde: “vire-se”. É flagrante a opção por um texto que ganha em “correção”, mas perde em expressão e comunicação. Em português brasileiro cotidiano, a expressão usada é “se vira!”, que denota que uma pessoa indique à outra que “dê seu jeito” ou algo assim. “Vire-se”, nesta forma, obedece cegamente a uma regra gramatical que prescreve que não se inicie oração com pronome oblíquo, mas transforma a fala da bruxa em algo improvável, inverossímil e até mesmo incorreto para o contexto. Que tipo de revisor ou revisora faria/faz isso?
Outras situações foram mostradas, como as solicitações de revisão por poetas ainda desconhecidos, que na verdade demandam não apenas a aplicação de regras de língua padrão, mas principalmente um diálogo sobre a construção dos poemas ou os efeitos que certas situações causam. O mesmo ocorre a romancistas que pagam por serviços de revisão, mas que pretendem ter seus textos lidos por um/a especialista em construção da narrativa, capaz de verificar aspectos mais afins à teoria literária do que propriamente à gramática do português.
No caso dos livros infantis, em especial de autores/as vivos/as, além das leituras especializadas, que apontem furos, incoerências ou, ao contrário, caretices onde deveria haver delírio, há a preocupação com questões de ilustração, projeto gráfico, diagramação e mesmo da divisão do texto pelas páginas, que costuma depender do projeto visual da obra. Quebras de linhas, paragrafação, manutenção de blocos narrativos que deem cadência e ritmo à história, produzindo, por exemplo, momentos de tensão, de suspense ou de humor, podem solicitar a atuação de um/a bom/boa revisor/a.
No caso de pessoas que publicam livros sem grandes ambições (sem desejar o Jabuti ou o Nobel), há outros aspectos que vão além da correção mais óbvia, de ortografia, regência, concordância, aspectos coesivos etc. Ocorre que alguns projetos pessoais podem carecer de uma revisão que ajude a tomar decisões delicadas, por exemplo, atualizar a ortografia de uma pessoa idosa ou, ao contrário, preferir a ortografia antiga, o que exige intensa e cuidadosa pesquisa do/a profissional de texto. O que sai e o que fica? O que pode “pegar mal” e o que pode ser compreendido como intencional?
A intencionalidade é algo que afeta diretamente o/a revisor/a, uma vez que é a percepção disso que o retira das ou o devolve às encrencas. É importante que se note que um texto “quis” ser como é, que tenha sido uma escolha, e não um erro. A imputação de problemas que não são, em realidade, problemas do texto ao revisor ou à revisora é um pesadelo.
Em casos extremos, a literatura pode ainda fazer propostas quase impossíveis de se revisar, como é o caso de autor contemporâneo brasileiro que escreve suas obras com uma língua que ele chama de “portunhol selvagem”, ou seja, uma mistura de português e espanhol aparentemente aleatória, num texto que dificulta a padronização em qualquer das duas línguas. Cria-se, parece, uma terceira língua, quase um idioleto, cheio de graça e criatividade, mas que põe um revisor/uma revisora mais caxias em maus lençóis. Melhor ser desapegado/a e rebelde para trabalhar com autores/as e textos assim.
Formação do revisor e da revisora rebeldes
Em suma, é possível dizer que a revisão do texto literário exija do/a revisor/a atitudes e decisões que ele ou ela dificilmente aprenderão em cursos ou atuando em textos de caráter mais instrumental. A experiência da revisão literária é peculiar. Autores e editores, nesse segmento, desejam sim uma boa revisão, mas também desejam o comentário, a dúvida, a sugestão e até mesmo uma proposta de melhor divisão e diagramação de um original, em especial para infantis e poesia. Esses clientes podem estar mediados ou não. É questão de escala, isto é, se trabalhamos para um indivíduo, com quem tratamos diretamente, ou se atuamos para uma casa editorial maior, cuja demanda chega por meio de um/a assistente editorial ou de um/a editor/a, que fará a ponte com o/a autor, traduzindo e (in)comunicando de cá para lá e vice-versa.
As demandas de revisão literária parecem menos comuns do que outras, talvez por pelo menos duas razões: o tamanho desse segmento de mercado em relação a outros e a especialização demandada dos profissionais que revisam textos literários, isto é, capazes da leitura desses textos e da relação de bom senso com eles e seus autores e autoras. Revisar literatura pode ser emocionante, mas também frustrante. Importante é saber que a literatura em português está viva, vívíssima, e que sempre haverá autores e editores dispostos ao diálogo sobre textos em linguagens desafiadoras e menos aderentes a regras estáveis.
Esta publicação é fruto de uma parceria com o projeto de extensão Aula Aberta, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). O projeto Aula Aberta tem a finalidade de oferecer aulas e palestras abertas à comunidade, para qualquer pessoa que se interessar pelo tema a ser debatido entre palestrantes convidados e público.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
RIBEIRO, Ana Elisa. “Uma mirada rebelde sobre a revisão de textos”, em Revista Ponte, v. 3, n. 1, ago. 2022. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/mirada-rebelde-revisão-textos
Ana Elisa Ribeiro é professora titular do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG, onde atua no ensino médio, no bacharelado em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens. É doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, licenciada e bacharel em Letras-Português pela mesma instituição. Entre seus livros mais recentes estão Escrever, Hoje e Multimodalidade, Textos e Tecnologias, ambos pela Parábola Editorial. Ana Elisa também é coordenadora do projeto de extensão Aula Aberta.
Muito interessante para a realidade contemporânea que envolve o autor, o revisor, (a) (o) editora, bem como as linguagens e criatividade.