Neste artigo, a professora e pesquisadora Adelaide de Souza apresenta, a partir da noção de interseccionalidade, reflexões sobre o lugar, na escola, da estética, dos saberes e dos modos de viver de uma juventude e infância marginalizadas. Como os materiais, as práticas e os currículos escolares atuais - profundamente marcados por um racismo estrutural - desfavorecem o (re)conhecimento da juventude negra e periférica? Com essa reflexão, a autora aponta para a urgência da elaboração de um currículo que permita a esses jovens um protagonismo nas relações escolares.
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O termo interseccionalidade é um conceito sociológico atento às interações e marcadores sociais na vida das minorias, uma forma de evidenciar manifestações que produzem e reiteram múltiplos sistemas de dominação, tais como o racismo e o machismo. Neste texto, quero chamar atenção para a estrutura dos currículos escolares, que se manifestam no conteúdo dos livros didáticos que muitas vezes marcam o início de um processo de exclusão: “[...] os discursos enunciados por colegas, professores, por meio de livros, de histórias contadas, pela vizinha ou na igreja podem propiciar ou não a valorização das múltiplas identidades que integram o povo brasileiro” (SOARES, 2013, p. 11). No entanto, muitos jovens e crianças não veem suas características e representações estéticas e sociais refletidas nos materiais didáticos oferecidos nas escolas.
A juventude e infância negra, moradora de favelas e periferias, não se identifica e não vê sentido nos conteúdos dos livros e materiais didáticos que esteticamente não dialogam com as produções que ocorrem nas suas ruas e vizinhanças. E essas, por sua vez, não têm entrada no universo escolar.
É necessário refletir a respeito da interseccionalidade, comumente usada para pensar a inseparável estrutura do racismo, do capitalismo e do patriarcado, e das articulações decorrentes que estão imbricadas às questões de gênero, classe e raça, e colocam as mulheres negras e faveladas mais expostas e vulneráveis.
A representação da favela está sempre associada à noção de ausência. Esta lógica está presente para quem nunca pisou em um destes territórios, mas também se perpetua entre seus próprios moradores que, a partir de um modelo branco e hegemônico como ideal de ser, têm suas produções e modos de viver invisibilizados e suas estéticas desprestigiadas e inferiorizadas.
No entanto, conhecendo as favelas, é possível se deparar com produções de arte, arquitetura domiciliar, becos e praças que ganham configurações específicas pelo domínio dos moradores. Tudo isso reflete uma expertise que, ainda desconhecida, poderia ter muito a ensinar, e quem sabe indicar possibilidades de diminuir as distâncias e desigualdades sociais entre classes no Brasil.
Pesquisas empíricas, realizadas em território de pobreza (BICHARA, 2011; COELHO, 2006, 2007; PEREZ e JARDIM, 2015) onde crianças brincam livremente, indicam que elas enfrentam e constroem diferentes maneiras de lidar com suas sociabilidades e limites territoriais, trazendo um rico repertório de habilidades que não costumam ser consideradas relevantes.
Em muitas favelas crianças podem ser vistas brincando e circulando pelas ruas livremente, mesmo sem a companhia de adultos. Crianças maiores, desde cedo, costumam ser responsáveis pelos cuidados de seus irmãos menores. Este aspecto traz responsabilidades para as crianças maiores, ao mesmo tempo que pode criar cumplicidades entre elas. São momentos ricos de interação e formas de cuidado entre as crianças de idades variadas.
Castro (2019) afirma que os Estudos da Infância, desde suas origens no final do século XIV, têm se apoiado em conceitos universais sobre as crianças, sendo parte integrante de uma concepção global de civilização e modernização a partir da Europa. No entanto, estudar crianças de favela demonstra que mesmo nas favelas não existe uma única infância, mas diversas infâncias, atravessadas, muitas vezes, pela forma como está estruturado o território específico onde a criança vive e sua estrutura familiar. Além disso, há uma distância de alguns parâmetros idealizados do que representa ser criança.
Outro aspecto diz respeito ao modelo de família reconhecido e valorizado no ambiente escolar. A família escolar é predominantemente patriarcal, consolidada a partir de padrões culturais europeus, subjugando os modos de vida de negros, indígenas, favelados e outras minorias.
Bruschini (1989) aponta que isso exige uma reorganização interna dos núcleos familiares a partir de modelos conservadores, enquanto que, no cotidiano, suas configurações ainda são desconhecidas e desvalorizadas.
Um exemplo é que, na busca pela sobrevivência em algumas favelas, muitas vezes, os cuidados com as crianças são terceirizados por vizinhos ou parentes que, às vezes, recebem pequenas remunerações por este serviço, para que as mães possam trabalhar. Essas cuidadoras, sempre mulheres, geralmente ficam com pequenos grupos de 4 ou 5 crianças de famílias diferentes, que compartilham momentos e alimentações ao longo do dia. Este modelo de coletividade apresenta formas compartilhadas de cuidados que vão além do padrão, indicando que, no cerne das transformações da sociedade capitalista, se identifica uma variabilidade de configurações familiares. “[...] a desigualdade de classes permanece como um divisor de águas, no acesso a políticas públicas e na forma como as famílias se organizam e podem suprir necessidades básicas de seus integrantes” (EURICO, 2020, p. 98).
Todos os aspectos apontados até aqui evidenciam - tendo em vista um processo de escolarização com mais de trinta anos de democracia no Brasil e pautado no modelo de bem estar social - que as políticas públicas ainda não foram suficientes para reduzir de modo significativo as assimetrias sociais entre negros e brancos.
Segundo Costa (2020), é importante lembrar que, de 10 pessoas negras, 4 não conseguem concluir o ensino fundamental. Os obstáculos são de várias naturezas: desde a falta da adoção de um currículo, em que a pessoa negra se veja, até questões socioeconômicas, que exigem apoio para a permanência de crianças e jovens no ambiente escolar - sobretudo porque a lógica organizada do espaço não ocorre ao acaso.
Como destaca Castro (2010), historicamente, a massificação e a obrigatoriedade escolar se constituíram como uma tentativa de diminuição das desigualdades sociais. Porém, os indivíduos foram distinguidos por méritos a partir de um modelo ideal, de quem está mais próximo da estrutura oferecida para receber o conteúdo escolar, e “[...] o racismo se insere nas relações como componente desqualificante. Ele contamina tanto o convívio social quanto a disposição institucional” (COSTA, 2020, p. 281).
Souza et al (2018) destacam que apenas os sujeitos que tiveram uma socialização capaz de desenvolver neles uma identificação afetiva com o conhecimento são capazes de incorporar o conhecimento para se inserir no mundo do trabalho qualificado e ser úteis e produtivos à sociedade.
Cabe questionar a possibilidade da escola, a partir de outro lugar, permitir uma configuração em que os estudantes desempenhem papel crítico na sociedade. Burgos (2012) destaca que a complexa combinação entre desigualdade social e diversidade cultural se faz presente nos tempos atuais, desafiando a estrutura escolar a oferecer certo protagonismo às camadas mais pobres da população.
As crianças e jovens que têm tido sua estética e representatividade tradicionalmente negadas no currículo escolar precisam ocupar os espaços principais da escola, saindo dos interstícios e das pequenas brechas que lhes são designadas. As quebradas têm populações que desfrutam de altos níveis de riqueza cultural e de sociabilidade que necessitam - urgentemente - de reconhecimento.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
SOUZA, Adelaide Rezende de. “Currículo, estética e racismo – interseccionalidades”, em Revista Ponte, v. 1, n. 6, set. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/curriculo-estetica-racismo-interseccionalidades
Adelaide Rezende de Souza é psicóloga, pesquisadora do NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da ONG Redes da Maré e pós-doutoranda do Instituto de Psicologia – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Adelaide é também formadora da Rede Consultoria, onde ministra o curso de Ludicidade, além de ser colunista mensal da Revista Ponte, com a coluna Educação, ludicidade e cidadania - interseções.
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Referências:
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BRUSCHINI, C. Uma abordagem sociológica de família. In: Revista Brasileira de Estudos da População. São Paulo, v 6, n1, p. 1-23, jan/jun. 1989.
BURGOS, M. B. Escola Pública e Segmentos Populares em um Contexto de Construção Institucional da Democracia. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 55, no 4, pp. 1015 a 1054, 2012.
COSTA, C. L. J. Pandemia do coronavírus e o seu impacto na população negra. In: AUGUSTO, C. B. e SANTOS, R. D. dos. (Org.). Pandemias e Pandemônios no Brasil. (livro eletrônico) SP: Tirant lo Blanch, 2020. Disponível em: http://www.unicap.br/catedradomhelder/wp-content/uploads/2020/05/Pandemias-e-pandemo%CC%82nio-no-Brasil.pdf> Acesso em: 20 mai. 2020.
EURICO, M. C. Racismo na Infância. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2020.
SOARES, M. C. Prefácio. In: (Org.) BRITO, B. e NASCIMENTO, V. Negras (In) confidências. Bullying, não. Isto é racismo. Mulheres negras contribuindo para as reflexões sobre a Lei 10.639/03. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
SOUZA, J. et al. Ralé brasileira: quem é e como vive. 3a edição ampliada com nova introdução. SP: Editora Contracorrente, 2018.
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