Neste ensaio, o professor Pablo Almada apresenta reflexões sobre as medidas que têm sido tomadas como supostas soluções aos problemas estruturais da educação brasileira, marcada por profundas desigualdades. O pesquisador aponta que essas medidas, inclinadas à militarização, produzem uma educação interditada, afastada do humanismo e de uma gestão eficaz.
Apoiando-se nos problemas definidos no texto Sociedade e educação no século XXI: os desafios da pandemia, podemos ampliar o escopo da conflitualidade e das desigualdades presentes no cenário educacional brasileiro. Analisaremos aqui alguns dos resultados negativos que o Brasil tem tido em matéria educacional, argumentando que esse cenário tem sido paradoxalmente contra-atacado por medidas que promovem uma acelerada desestruturação do sistema educativo brasileiro.
As alternativas vislumbradas para a mitigação das desigualdades educacionais, que possibilitariam sua recuperação e melhoria dos indicadores, estão sendo conduzidas por ações e políticas públicas que negam um olhar efetivo da raiz desses problemas. Pelo contrário, há um claro direcionamento para se testar soluções que estão na contramão dos estudos e pesquisas da área, valendo-se de modelos experimentais que partem de ideologias e crenças dos gestores públicos.
Para analisar tais questões, retornemos, portanto, à situação educacional brasileira no período imediatamente anterior à pandemia. Em 2018, o relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) indicou a permanência e a estagnação (desde 2009) das deficiências de aprendizagem dos estudantes brasileiros, o que nos coloca na disputa das últimas posições dentre as 78 nações do ranking (INEP, 2019). A avaliação indicou que 68% dos estudantes brasileiros, com 15 anos de idade, não possuem proficiência básica para matemática, alcançando 55% para ciências e 50% para leitura. Além disso, as diferenças se aprofundam quando essas proficiências são analisadas em torno das escolas privadas e públicas (estaduais e municipais), com claros prejuízos para as últimas. O relatório sugere ainda que esse cenário tem possibilitado a ocorrência de diversos efeitos, como os baixos ganhos salariais no mercado de trabalho e as condições precárias de qualidade de vida.
Em 2019, o relatório "Educação Já! - uma proposta suprapartidária de estratégia para a Educação Básica brasileira e prioridades para o Governo Federal em 2019 - 2022", produzido pela ONG "Todos pela Educação", identificou que, apesar da ampliação do acesso à escola que ocorreu nas últimas duas décadas, há ainda diversos entraves que induzem ao fracasso da trajetória escolar, como a grande evasão e o acúmulo de problemas referentes à qualidade de aprendizagem (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2019). A pesquisa reiterou os resultados do PISA, revelando que, dentre os jovens egressos do ensino médio da rede pública, apenas 9% e 29% possuem um aprendizado adequado de matemática e língua portuguesa, respectivamente.
Por sua vez, esta pesquisa também recomendou sete diretrizes para a elaboração de políticas públicas educacionais:
1) Reestruturação das regras de governança e melhoria da gestão;
2) Financiamento mais redistributivo e indutor de qualidade;
3) Efetivação da Base Nacional Comum Curricular nas redes de ensino;
4) Profissionalização da carreira e formação docente;
5) Primeira Infância como agenda intersetorial;
6) Alfabetização em regime de colaboração;
7) Nova proposta de escola de Ensino Médio.
A pluralidade de linhas de atuação sugere desde a reestruturação da gestão e a valorização dos profissionais da educação, a medidas de integração dos níveis de ensino, colaboração profissional e ações pedagógicas de maior alcance para a aprendizagem. Podemos entender que essas diretrizes se encontram em um caminho humanista de compreensão da complexidade dos processos de ensino e aprendizagem, atentando-se para a redução das desigualdades sócio-educacionais.
A evidência até aqui é que não são medidas unilaterais que podem promover o sucesso do sistema educacional. Se, durante as décadas de 2000 e 2010, a ampliação do acesso à educação praticamente conduziu o conjunto de políticas públicas educacionais, é notável que, assim como em outros países, não se alcançou uma real democratização da educação (BEAUD, 2002). Alguns critérios de medida estão presentes nesse campo, como a desilusão das famílias mais pobres e excluídas da ascensão social pela educação; a manutenção do desemprego, embora haja um prolongamento dos estudos com os ingressos nas universidades; a dificuldade de inserção e a precariedade do mercado de trabalho. Desse modo, é evidente que a melhoria dos indicadores educacionais necessita também de um aporte social de redução da pobreza, da geração de oportunidades iguais para todos e de maior integração com o mercado de trabalho.
No entanto, as iniciativas adotadas atualmente pelo Governo Federal se colocam em um campo divergente dessas diretrizes. Uma das principais políticas públicas nesse âmbito, e que tem sido bastante alardeada, é o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2020).
Concebido em parceria com o Ministério da Educação e o Ministério da Defesa, propõe a implementação de 216 escolas cívico-militares até 2023, sendo 54 por ano. Seu objetivo é a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem das escolas públicas, contando com militares do Exército, Policiais e Bombeiros, atuando na gestão escolar e na gestão educacional, pois, como afirma o projeto, "melhorar a disciplina em sala de aula [evita] que o docente gaste tempo para começar a aplicar o conteúdo".
A concepção dessa política pública está relacionada diretamente com o controle e a manutenção da disciplina na sala de aula, através de um respeito à hierarquia e à adoção de regras de conduta militares, como uso de uniformes, cortes de cabelo, canto do hino nacional e defesa da moralidade e da ordem. Deve-se ter em mente que o projeto preconiza a transformação de escolas públicas em escolas cívico-militares e não uma ampliação de colégios militares, sendo duas instituições diferentes, já que os colégios militares requerem rigorosos processos de ingresso, o que não é o caso das escolas públicas já existentes (GOMES, 2020).
Essa situação é, no mínimo, reducionista. Subjuga-se uma complexidade de problemas sociais acumulados ao longo dos anos e manifestos de diferentes modos, ao comportamento do aluno em sala de aula. Além disso, não é claro como a implementação dessa estrutura cívico-militar conduziria, por si mesma, a uma eficácia de gestão e dos gastos públicos, à valorização de profissionais e ao alcance de melhores resultados dos processos de ensino e aprendizagem.
Por fim, o que de fato representa esse programa é a continuidade de uma visão inepta e desumanizadora da educação, desviando o foco das questões essenciais e estabelecendo ações que não se defrontam rigorosamente com os problemas sociais e educacionais. Nesse caso, é notório que os conflitos sociais estejam sendo camuflados para servir a interesses de maior controle social, de homogeneização das diferenças sociais e imposição de uma conduta comportamental muitas vezes baseada numa cultura de violência e de recusa dos valores democráticos.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
ALMADA, Pablo. “A educação interditada: entre o humanismo e a militarização”, em Revista Ponte, v. 1, n. 4, mai. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/educ-interditada-humanismo-militariza%C3%A7%C3%A3o
Pablo Almada é sociólogo, com mestrado e doutorado pela Universidade de Coimbra. Atualmente é pós-doutorando em Ciências Sociais pela UNESP. Tem experiência na área de Sociologia e Ciência Política, com ênfase em Sociologia, atuando principalmente nos temas: Teoria Sociológica, Sociologia do Trabalho, Sociologia Histórica, Pensamento Social Brasileiro, Pensamento Político. Escreve mensalmente na Ponte, onde assina a coluna Sociologia e Educação no século XXI.
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Bibliografia
BEAUD, Stéphane. 80% au bac et après? - Les enfants de la démocratisation scolaire. Paris: La Découverte, 2002.
INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, "Pisa 2018 revela baixo desempenho escolar em leitura, matemática e ciências no Brasil". Portal INEP, 03 de dezembro de 2019. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/pisa-2018-revela-baixo-desempenho-escolar-em-leitura-matematica-e-ciencias-no-brasil/21206. Acesso em: 01 de abril de 2021.
LIMA, Iana Gomes. "Escolas cívico-militares: na contramão da democracia". Jornal da Universidade. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/escolas-civico-militares-na-contramao-da-democracia/. Acesso em 13 de abril de 2021.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares. Disponível em: http://escolacivicomilitar.mec.gov.br/18-o-programa. Acesso em 01 de abril de 2021.
TODOS PELA EDUCAÇÃO. Disponível em: https://todospelaeducacao.org.br/educacao-ja/#conheca, Acesso em: 04 de abril de 2021.
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