Paulo Caetano[1]
O celular à mão 24 horas por dia rouba tempo de leitura literária? O uso constante do aparelho ressignifica os pares “real x virtual”, “orgânico x inorgânico”? Como fica a Literatura diante do advento das séries de streaming? O que muda no ensino e na escola diante da ubiquidade das redes sociais? A informação facilmente acessada coloca em xeque que aspectos da escola? Em que medida a algoritmização da vida impacta a formação do indivíduo?
Essas perguntas me ocorreram há cerca de cinco anos quando, lecionando numa universidade pública, constatei que a maior parte dos graduandos, de Letras, assistia mais a séries (de streaming) do que lia Literatura. Sem condenar a escolha desses estudantes, comecei a indagar o motivo da preferência.
O alcance do streaming faz pensar nas estratégias usadas nesses produtos: de um lado, a experiência de imersão do cinema veio, em parte, para o domicílio (com as TV’s com mais de 40 polegadas) e, de outro lado, o vídeo está sempre à mão, no celular. Disso, algumas perguntas surgem: quais ferramentas mercadológicas os serviços de streaming usam para serem tão presentes? Que recursos oriundos da linguagem do cinema estão presentes ali? Em que medida lidam com uma demanda narrativa que parece existir atemporalmente? Como os algoritmos mapeiam eficientemente o usuário? Que necessidades sensoriais e psíquicas saciam, canalizam?
As séries abordam temas vários que permitem pensar diversos aspectos da contemporaneidade como, por exemplo, as dinâmicas das relações sociais, o impacto da tecnologia e da biopolítica[2], os vetores sociais e econômicos que concorrem na formação de uma comunidade, o funcionamento do aparelho psíquico, dentre várias outros temas que a ficção pode abordar, ou seja, que a literatura também pode (ou deve) abordar. Todavia, a aparente preferência por séries pode se dar devido à força que a imagem (em movimento, no caso) tem alcançado.
No campo da cultura, a Literatura, durante muito tempo, desempenhou papel fundamental em relação às outras manifestações artísticas. O desenvolvimento tecnológico, ao longo dos séculos XIX e XX, afetou a produção cultural, com o surgimento de novas formas artísticas, como a fotografia e o cinema. Além disso, a cultura se torna um produto mercadológico fabricado em larga escala – algo novo. Com o surgimento da indústria cultural, a produção fílmica se consolida como discurso formador do imaginário social, o qual também é disputado por outros agentes midiáticos, como as redes sociais, agentes jornalísticos...
Essa mudança produz impactos sociais e cognitivos, os quais são acentuados pelo desenvolvimento contínuo de novas mídias vinculadas à internet. Seja no cinema, com longas-metragens, seja nos serviços de streaming, com as séries, o vídeo (e, antes, a imagem) parece corroborar a ideia de uma desestabilização do horizonte grafocêntrico, que dá lugar a uma paisagem imagética[3], isto é, um predomínio da imagem sobre o texto verbal. As ciências humanas buscam, dentre os inúmeros objetivos que ela concebe, discutir os desafios colocados pela centralidade da imagem no mundo contemporâneo, propondo novas abordagens dos mais diversos discursos. Assim, seja na disciplina Literatura Comparada, seja na corrente crítica dos Estudos Culturais, as pesquisas não se restringem apenas a textos literários; elas se debruçam sobre as mais diversas manifestações culturais e artísticas[4], a priori sem hierarquia de sistema semiótico.
Pensar, pois, o diálogo da Literatura com séries de streaming é, portanto, indagar qual é o estatuto da ficção no século XXI, como a tecnologia se vale de demandas psíquicas, como se dará a experiência de leitura da palavra em face de um horizonte imagético em provável expansão. Essas são algumas questões instigantes que tenho trabalhado em ensaios[5] e em eventos[6]. Há espaço para diálogo com as mais diversas áreas.
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Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222 - 232.
CAETANO, Paulo R. B.; PASSOS, D. O. R. Trabalho: vazio e espoliação em Fifteen Million Merits (Black Mirror). Teias (Rio de Janeiro), v. 21, p. 232-241, 2020.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Da representação para a apresentação. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/da-representacao-para-a-apresentacao/ acesso 04 de janeiro de 2021.
[1] Paulo Roberto Barreto Caetano é professor de Literatura e Outros Sistemas Semióticos na Unimontes, doutor em Teoria da Literatura pela UFMG. Autor de Sul do chão (contos, 2010), Achados avulsos (2019, ensaios). E-mail: paulorcaetano@yahoo.com.br Instagram: https://www.instagram.com/paulo___caetano/ Facebook: https://www.facebook.com/paulo.caetano.984786/ [2] O termo biopolítico diz respeito, nesse caso, à gestão da vida, isto é, como o indivíduo é administrado por instituições públicas ou privadas através de procedimentos como a vigilância, o controle de natalidade e mortalidade, a gestão de fronteiras, dentre outros. Para mais, ver O nascimento da biopolítica, texto fundador dessa temática e assinado por Michel Foucault. [3] Cf, Seligman-Silva, sd [4] Como se vê na crítica biográfica, corrente que se vale não “só” do texto literário, mas também de outros materiais como as cartas, os arquivos dos escritores, encarando aspectos biográficos, a metáfora (cf. Eneida Maria de Souza, 2007). [5] Um exemplo é o ensaio que publiquei juntamente com Daniela Passos (UEMG) acerca de um episódio da série Black Mirror: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistateias/article/view/48648 [6] Um exemplo é o Colóquio “As séries de TV e de streaming: diálogos com Literatura, filosofia e Educação”, o qual segue para a 4ª edição, em 2021. https://coloquioseries.wixsite.com/websiteuemg/mais-informa%C3%A7%C3%B5es
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