Neste artigo, o professor e pesquisador Vicente de Lima-Neto se debruça sobre o fenômeno viral que são os memes que circulam na internet e como o professor de línguas pode se utilizar deles para o ensino. Relacionando-o aos novos estudos do letramento, se busca responder à pergunta: o que podemos fazer com o meme em sala de aula? O autor se propõe a fazer um histórico do conceito, mostrando que ele é mais antigo do que se pensa, e a apontar caminhos para o trabalho com memes no espaço escolar.
Fonte: WIX
Não, os memes não começaram na internet: eles sempre existiram, embora o conceito seja da década de 1970. À época, o biólogo Richard Dawkins publicou O gene egoísta (DAWKINS, 2010), defendendo que o ser humano é uma máquina de sobrevivência, sobretudo porque dá guarida a replicadores biológicos, os genes. Mas há outros tipos de replicadores, que também permitem evoluções, como a cultural: assim o autor chega ao meme, que seria um replicador cultural, ou seja, ideias que são replicadas de tempos em tempos, pulando de cérebro para cérebro, por um processo de imitação.
Essas ideias ajudam na formação de uma cultura: por exemplo, num casamento, é tradição que se use a aliança no dedo anelar esquerdo. Esse costume vem da Grécia Antiga, quando se acreditava na existência de uma veia que ligava esse dedo ao coração – a vena amoris, o que depois foi desmistificado pela ciência. Outro exemplo aconteceu no auge da pandemia: para nós, brasileiros, foi difícil não apertar as mãos ou não abraçar alguém, num cumprimento trivial. Tivemos de encontrar outras maneiras para a saudação, o que gerava certo constrangimento por não se saber como agir. Eis aí dois exemplos de memes: o uso de aliança na mão esquerda dos nubentes e o cumprimento num encontro, características importantes para a nossa cultura.
Aqui, neste texto, dedico-me a outros tipos de memes: àqueles que circulam nas timelines das redes sociais ou aos que recebemos pelo whatsapp. São textos verbais, verbo-imagéticos ou imagéticos, com teor humorístico e/ou crítico, trazendo uma situação do cotidiano e geralmente constituído por montagem.
Knobel e Lankshear (2005; 2020) estão entre os primeiros a atrelar esse fenômeno aos Novos Estudos do Letramento, por entender que os memes estão ligados a práticas de textos escritos, imagéticos ou até mesmo com linguagem em movimento, além de se espraiarem rapidamente na web – o que marca mais uma de suas características, a viralização.
Dentro dessa seara, para o professor de línguas, me parece ser um objeto muito frutífero para trabalhar nas aulas, com diferentes faixas etárias: num período em que ainda estamos tentando entender e implementar a Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018), tanto nas licenciaturas quanto nas escolas,
o meme pode ser um meio para o trabalho com diferentes categorias, como intertextualidade, gêneros como ação social, criticidade, remix, referenciação, discursos de opressão, discurso político, multimodalidade, fake news e outras desordens informacionais, além, é claro, para o desenvolvimento de determinadas habilidades exigidas para leitura em ambiente digital (COSCARELLI; RIBEIRO, 2019). Foco nos três primeiros temas aqui: intertextualidade, gêneros e criticidade.
Intertextualidade é, segundo Carvalho (2018), um fenômeno textual-discursivo que dá conta, de forma mais ou menos explícita, pontual, mas geralmente planejado e sempre indiciado, das relações entre textos, gêneros e estilos. Por exemplo, a Mona Lisa, além de ser a obra de arte mais conhecida do mundo, é também um meme de sucesso na internet, uma vez que passa por diferentes processos de edição, fazendo relações com outros textos ou com outros personagens, como Lara Croft ou mesmo com a Nazaré Confusa.
Trabalhar com memes e intertextualidade é fazer com que o aluno perceba como o texto está constituído, com que outros textos ele dialoga e quais são os propósitos do produtor. Logo, algumas perguntas podem ajudar no desenvolvimento da aula, tais como: “quais são as imagens ou personagens envolvidas?”; “qual é a função de cada uma delas?”; “com que outro texto esse meme está conversando?”; “o que o produtor do texto queria alcançar com isso?”.
É interessante também entender o meme como um recurso para atender a diferentes propósitos. Por exemplo, é comum instituições públicas se utilizarem deles, em suas contas oficiais na web, para divulgar algum produto/serviço – o que seria um anúncio publicitário – ou para divulgar ideias, como uma campanha de conscientização sobre o lixo – que seria um anúncio institucional. É também comum nos memes o resgate de elementos conhecidos em outros gêneros, como a organização em quadros. Aliás, eles começaram a se popularizar por conta das rage comics, que têm a estrutura do gênero tira – uma sequência narrativa em quadros, com personagens, imagens e uso de balões de diálogo. Quando o meme se organiza assim, estamos diante do gênero tira cômica mesmo. A popularização como meme se deu com a utilização proposital de cópia/cola grosseira de informações, montagens e colagens, que são característicos do remix, próprio da cultura digital. Logo, pode ser muito produtivo fazer um trabalho com meme e gênero em sala: o primeiro é muito instável, tem diferentes formatos e pode alcançar diferentes propósitos, a depender de quem e para quem são produzidos, enquanto o segundo apresenta recorrência de informações e cumpre as mesmas ações sociais, num mesmo contexto de cultura. Isso quer dizer que, embora reconheçamos diferentes tipos de texto como meme, eles podem pertencer a gêneros diferentes.
Há também quem se utilize de memes para criticar um comportamento de alguém ou para divulgar informação falsa, o que também é um campo profícuo para o trabalho com desordens informacionais e, por conseguinte, com letramento crítico. Nestes casos, pode-se perguntar em sala: “quem produziu o meme?”; “para quem é destinado?”; “qual é a finalidade?”; “a quem interessa que um meme circule com informação falsa?”. A resposta a essas perguntas ajudará na construção de um cidadão mais crítico na sociedade.
Eis possíveis caminhos pedagógicos com memes, que são reflexo de uma cultura digital em que estamos mergulhados. É difícil alguém não se deparar com pelo menos um deles por dia. Então, não há como fechar os olhos para eles na escola. Embora tenha centrado atenção nas aulas de língua, se vê que os memes, como fruto de uma mistura cultural, são interdisciplinares e devem ser utilizados em diferentes searas do conhecimento.
Esta publicação é fruto de uma parceria com o projeto de extensão Aula Aberta, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). O projeto Aula Aberta tem a finalidade de oferecer aulas e palestras abertas à comunidade, para qualquer pessoa que se interessar pelo tema a ser debatido entre palestrantes convidados e público.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
LIMA-NETO, Vicente. “Memes: explorações possíveis na escola”, em Revista Ponte, v. 2, n. 10, ago. 2022. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/memes-explorações-possíveis-escola
Vicente de Lima-Neto é professor de Linguística da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA/ RN), líder do Grupo de Pesquisa Linguagens e Internet (GLINET/ UFERSA), vice-líder do Grupo de Pesqusia Oralidade, Letramentos e Ensino (ORALE/ UFERSA) e um apreciador de memes. E-mail: vicente.neto@ufersa.edu.br. Instagram: @vlimaneto
Este artigo foi importante para a sua reflexão? Então ajude a Revista Ponte a manter este projeto e conheça o nosso projeto de financiamento coletivo no Catarse.
Referências
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC/ CONSED/ UNDIME, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 23 ago. 2019.
CARVALHO, A. P. L. Sobre intertextualidades estritas e amplas. 2018. 135 f. Tese (Doutorado em Linguística) – PPGL, UFC, 2018.
COSCARELLI; C.; RIBEIRO, A. E. Leitura e ensino: por avaliações que levem (mesmo) os ambientes digitais em consideração. Texto Digital, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 101-129, jul./dez. 2019.
DAWKINS, R. O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, [1976] 2010.
KNOBEL, M.; LANKSHEAR, C. Memes and affinities: Cultural replication and literacy education. Annual NRC, Miami, 2005. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/249902174_Memes_and_affinities_Cultural_replication_and_literacy_education. Acesso em: 13 jul. 2022.
______. Memes on-line, afinidades e produção cultural (2007-2018). In: CHAGAS, V. (Org.). A cultura dos memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital. Salvador: EDUFBA, 2020, p. 85-126.
Comments