A professora e pesquisadora Márcia Cunha apresenta, neste ensaio, reflexões sobre as novas formas de interação social - em espaço concreto e virtual - marcadas pela segregação e pelo isolamento do indivíduo. Essas interações, um advento da pós-modernidade, têm se consolidado diante da pandemia, acentuando, cada vez mais, a desumanização dos sujeitos.
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As representações sociais se constituem através das interações em sociedade, uma vez que é prerrogativa dos grupos humanos o compartilhamento do espaço e, consequentemente, do modo de vida. Sendo assim, essas interações estão em constante movimento e podem ser modificadas ou enriquecidas, contribuindo para que não se tornem hegemônicas, o que ocorre quando, ao contrário, estão apoiadas em estereótipos cristalizados originados em leituras equivocadas ou, ainda, como reflexos das transformações da modernidade.
Considerando essa perspectiva, constata-se que a modernidade nos contemplou com o aprofundamento da luta de classes, quando se refere à dinâmica do sistema produtivo. Por outro lado, a pós-modernidade aprofundou a segregação social dos espaços (concreto e virtual) ao passo em que fortaleceu a individualização do sujeito, não no sentido de torná-lo indivisível, mas no sentido de gerar indiferença entre os sujeitos, principalmente em relação àqueles que sobrevivem nos centros metropolitanos, onde a face do sistema capitalista se mostra muito mais claramente do que em regiões interioranas. Ou seja, as novas visões de mundo e representações sociais impostas pelo contexto pós-moderno refletiram de forma contundente no processo das interações sociais dos grupos mais afetados pelas grandes transformações dos séculos XIX e XX.
Até mesmo os espaços públicos foram dando lugar a espaços segregados, de maneira a promover o isolamento dos sujeitos em todos os aspectos da dinâmica da vida em sociedade e as interações que se estabelecem a partir dela. Lazer, trabalho, escola, enfim, a maioria das estruturas que promovem as interações sociais foram se diferenciando e se separando de acordo com as visões de mundo e representações sociais dos grupos que compõem a sociedade heterogênea do século XXI.
O capital ou o dinheiro, em nome da liberdade e individualidade, limitou as relações sociais e as conduziu através de valores que determinam o valor humano. A disputa por status está presente no estilo de vida pós-moderno e, de forma mais intensa, nas grandes metrópoles. O consumo de bens e a posição que estes ocupam no ranking da modernidade é o fator de diferenciação em relação àqueles que são definidos por “bem comum, ultrapassado ou obsoleto”, sendo que, na escala hierárquica, os modernos e atualizados estão sempre uma posição acima dos outros.
De forma imperativa, a pós-modernidade se apresenta através da razão em detrimento da emoção. Quanto mais lógico, pragmático, ordenado, sistemático, mais superior e mais adequado será o sujeito pós-moderno. As sensibilidades, neste contexto, tornaram-se improdutivas e desnecessárias, uma vez que limitam e atrasam o progresso, uma das palavras-chaves do mundo moderno.
A globalização, consequência do advento da internet, ocupou espaço nas transações comerciais de grandes mercados e, sutilmente, passou a ser alternativa para interações sociais a longa distância através das chamadas “redes sociais”. Atualmente, o mundo virtual, paralelo ao mundo concreto, tomou dimensões ilimitadas no que se refere à comunicação em massa, alcançando milhares de pessoas em tempo real e determinando o tom do diálogo na política, na religião, na cultura, na economia, etc.
Reiterando ainda mais as tendências pós-modernas, a pandemia do século XXI acabou por oportunizar ao sistema a possibilidade de automatizar ainda mais as relações e os vínculos entre trabalhadores, familiares e amigos, de modo a conduzir as interações através do uso das redes sociais e das tecnologias, em prol do isolamento social. E, neste recurso, apesar de globalizado e democrático, existe a formação dos grupos e a polarização de ideias que se dão de maneira mais clara, sem impedimentos morais que limitem as visões de mundo, e sobrepujando o que é considerado como consenso universal em um mundo civilizado.
Formam-se comunidades e grupos que se identificam em algum aspecto ao passo que excluem aqueles que não se enquadram no perfil desejado. Neste mundo virtual, é possível existir ataques e defesas, desmoralização e enaltecimento de figuras emblemáticas, divulgação de fatos verídicos e, por outro lado, mentiras deflagradas com o propósito de confundir pessoas menos esclarecidas. Enfim, é como um mundo paralelo ao mundo concreto, polarizado, segregado, fragmentado, sob a alcunha da globalização ou de universalização da comunicação.
Há ainda a sensação de segurança, pois, ainda que a interação ocorra, por ser em espaço virtual, o usuário acredita se resguardar - com um bloqueio ou exclusão - da realidade pungente da qual, no mundo real, concreto, não há como escapar. Enfim, o mundo virtual pode ser comparado a uma espécie de “solidão acompanhada”, uma vez que, apesar das interações sociais ocorrerem, existe a linha tênue entre os usuários, que é o aparelho, uma espécie de fortificação digital, como um muro de proteção entre a realidade concreta e o mundo virtual.
No entanto, quando se fala em segregação de espaço, fato é que, muito antes das redes sociais se popularizarem e da pandemia acontecer, o sujeito pós-moderno já se encontrava solitário em meio a uma multidão de semelhantes. Na atualidade, toda a cadeia que lhe confere o status de ser social contribui para este isolamento. Até mesmo o próprio planejamento urbanístico das grandes metrópoles reforça o fenômeno isolacionista.
A capital mineira, por exemplo, é o resultado de um projeto moderno onde a estrutura viária foi projetada como “veias e artérias” (CALDEIRA, 1997), otimizando o fluxo e concentrando os serviços na região central. Pela proposta, percebe-se que a cidade foi projetada para os funcionários públicos do Estado, pois a maioria dos espaços de lazer e trabalho possuem ligação com as áreas reservadas a esta classe de pessoas. Porém, com o passar dos anos e sem uma política de acolhimento das famílias de baixa renda que trabalhavam na cidade e usavam todos os serviços públicos ali concentrados, passaram a estabelecer em seu entorno inúmeras moradias de forma irregular. Foi então que, a partir da década de 1970, com a expansão do espaço periférico em consequência da iniciativa de reformulação da capital belorizontina, tais famílias foram sumariamente “empurradas” para a região metropolitana, nas cidades vizinhas, inclusive históricas. Foram construídos, para tanto, conjuntos habitacionais e loteamento de grandes áreas em acordo com as prefeituras destas cidades. Ou seja, o espaço urbano das grandes metrópoles não foi projetado para as grandes aglomerações, para o intenso fluxo de trabalhadores assalariados, tão pouco para a interação social entre os variados grupos. A despeito disto, o aumento populacional e a falta de políticas de regulamentação e distribuição do espaço, na maioria das vezes submissa à especulação imobiliária, gerou o que Caldeira (1997) define como “segregação urbana”, consequência da criação de “enclaves fortificados”.
Estes enclaves, de acordo com a autora, são fenômenos que ocorreram em grandes cidades como São Paulo, por exemplo, onde, em virtude do processo de globalização, centralizaram na cidade os polos de transações comerciais e financeiras, em detrimento das regiões fabris que se destacavam até a década de 1980. O resultado foi a transformação urbanística que levou ao surgimento de cortiços e favelas, estabelecidos em fábricas e casas abandonadas e que, segundo a autora, é a causa da segregação do espaço urbano. Segregação que se consolida através do surgimento de condomínios como alternativa para a manutenção das classes, espaços os quais se estabelecem em áreas estratégicas, mas de maneira isolada, pois dentro deles encontram-se grande parte da rede de suprimentos para atendimento da demanda dos seus moradores. Essas demandas estão relacionadas às suas próprias expectativas culturais, familiares, profissionais, e a todos os outros aspectos que determinam seu posicionamento como ser social, como afirma Simmel (1973, p.13) ao se referir às mentalidades que se manifestam no estilo de vida pós-moderno, metropolitano:
“- pode-se deixar cair um fio de prumo para o interior das profundezas do psiquismo de tal modo que as exterioridades mais banais da vida estão, em última análise, ligadas às decisões concernentes ao significado e estilo de vida”.
Portanto, a segregação do espaço, seja no mundo virtual, seja no mundo concreto, é a realidade do mundo pós-moderno. Em consequência, o ser social transformou-se em um ser solitário, que interage de forma autômata com seus grupos, obedecendo à lógica do sistema que determina seu estilo de vida de forma que este se sinta parte da sociedade. O sujeito está só, rodeado por uma multidão que, ironicamente, também está.
O mundo pós-moderno é um mundo de separações. Os sujeitos se identificam por seu modo de vida e ali estabelecem uma espécie de comunidade que coexiste com outras comunidades dentro de uma sociedade. Existem as comunidades dos trabalhadores, os quais buscam sobreviver com o mínimo de dignidade, transitando entre os espaços públicos e buscando se apropriar deles, mas, na maioria das vezes, sem sucesso. Existem as comunidades daqueles com maior poder aquisitivo, os quais criam seus próprios espaços dentro do espaço público, de modo a proteger-se daqueles que não se identificam com seu modo de vida e, portanto, não podem transitar em seus “territórios”, o que é garantido com segurança própria e apoio da segurança pública, em nome da lei e da ordem.
Existem também aquelas comunidades alternativas invisíveis para o Estado e para as comunidades abastadas, mas sempre presentes como mão-de-obra a ser explorada: são as favelas, os cortiços, os sem-teto.
Por fim, as cidades e as redes trazem consigo uma espécie de mosaico de povos, os quais buscam sobreviver em meio à dinâmica do sistema e às transformações constantes, e que se impõem sobre o modo de vida da sociedade. E este modo de vida, tanto no mundo virtual quanto no concreto, apropria-se da assimetria em função da segregação, do isolamento e da exclusão do que é diferente, transformando sociedades em um conjunto de comunidades ou grupos rivais, polarizados e indiferentes àquilo que os torna semelhantes: a própria humanidade.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
CUNHA, Marcia Fernandes da. “Pós-modernidade e segregação no espaço concreto e virtual”, em Revista Ponte, v. 1, n. 4, mai. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/pos-modernidade-segrega%C3%A7%C3%A3o-espa%C3%A7o-concreto-virtual
Marcia Fernandes da Cunha é graduada em História e mestranda em Educação e Docência pela FAE/UFMG, onde desenvolve pesquisa na linha "Educação em Museus e divulgação científica". É pós-graduada em "História e política Africana", professora de História do ensino fundamental e médio nas Redes Municipal e Estadual de Minas Gerais. É autora do blog História Corrente.
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Bibliografia
AUGÉ, Marc. Não-Lugares: uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1996.
CALDEIRA; Teresa; Enclaves Fortificados: a nova segregação urbana; Março; 1997
LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2006.
MARICATO, Erminia; Para entender a Crise Urbana; 1º ed., Ed. Expressão Popular; São Paulo; 2015
OLIVEIRA; Claudio Márcio; Deslocamento de trabalhadores em Belo Horizonte: elementos para pensar a educação na forma de acesso à cidade;2011.
SILVA, T. T. . Identidade e diferença: impertinências. Educação e Sociedade, São Paulo (SP), n.79, cap.2, 2002.
"O capital ou o dinheiro, em nome da liberdade e individualidade, limitou as relações sociais e as conduziu através de valores que determinam o valor humano." .... infelizmente é fato ! Muito difícil desconstruir isso....mas, necessário !