A pesquisadora e professora Bárbara Mano de Faria apresenta, neste artigo, reflexões acerca do Coletivo de Mulheres Migrantes – Cio da Terra, evidenciando a vivência de cada mulher migrante e os processos que cada uma sofreu até a chegada em um país de acolhimento. Ademais, ela discute o que é ser mulher migrante (ou ser migrante e mulher).
Fonte: Wix
“Somos terra fértil sem fronteiras”. É este o lema que, desde abril de 2017, vem semeando, por onde é evocado, a razão de ser do Coletivo de Mulheres Migrantes – Cio da Terra, atuante na região metropolitana de Belo Horizonte, capital do estado brasileiro de Minas Gerais e lugar que essas mulheres (de diversas nacionalidades, inclusive brasileira) escolheram para morar e transformar. A existência do Cio da Terra – originado do encontro de mulheres que, em suas trajetórias individuais, já carregavam consigo bagagens repletas de saberes e de potência – simboliza um movimento de resistência em um cenário global contemporâneo marcado pela reconfiguração dos fluxos humanos e pelo fenômeno crescente da feminização das migrações.
Vindas principalmente de países da América Latina, com destaque para a Venezuela, a Colômbia, o Haiti e o Peru, mas também da Síria e de países africanos, como a República Democrática do Congo, todas as mulheres migrantes que integram as atividades do coletivo vivenciam processos migratórios que convergem no âmbito das chamadas “migrações Sul-Sul”. Por consistirem em “movimentos que incluem percursos, cada vez mais intensos, entre os países do Sul global” (BAENINGER et.al., 2018, p.13), as migrações Sul-Sul são frequentemente marcadas pela condição de deslocamento forçado de muitas mulheres e famílias, cujas vidas estavam em risco em seus países de origem, por razões de diversas naturezas.
Por outro lado, como aponta Lisboa (2006, p.152), os estudos migratórios ainda ignoram muito as especificidades das mulheres nos processos de migração. Exemplo disso é a negligência quanto ao aumento significativo das mulheres que migram sozinhas ou acompanhadas de seus familiares, “dado o caráter multidimensional nos papéis atribuídos à mulher na família”, à sua entrada anual crescente no mercado de trabalho e, finalmente, à sua mobilidade interna e externa, “em busca de melhores condições de vida ou fugindo de diferentes formas de opressão e exploração”.
Consciente de todos esses perfis migratórios e, mais do que isso, sensível às particularidades que atravessam a(s) condição(ões) de ser mulher migrante, o Cio da Terra se organiza em várias frentes de ação, a saber: assistência social, geração de renda, formação sociopolítica, comunicação e ensino de línguas. Por meio dessas ações, o coletivo tem o intuito de promover a integração de mulheres imigrantes e refugiadas nas comunidades onde residem, pelas vias do acolhimento humanitário, mas buscam também garantir a representatividade desse grupo nos espaços de fala e de articulação pública, como as redes de suporte à causa migratória na região metropolitana de Belo Horizonte.
Transpondo a noção de acolhimento para os processos de ensino-aprendizagem, a frente de ensino de línguas – representada pelo Curso de Português para Mulheres Migrantes – abraça a proposta do letramento crítico, em que a língua é um instrumento de poder e de transformação social (MATTOS, 2010, p.139), para construir um projeto pedagógico orientado pela perspectiva de língua de acolhimento. Conforme Grosso (2010, p.74), o aprendizado de português é motivado
[...] por diferentes necessidades contextuais, ligadas muitas vezes à resolução de questões de sobrevivência urgentes, em que a língua de acolhimento tem de ser o elo de interação afetivo (bidirecional) como primeira forma de integração (na imersão linguística) para uma plena cidadania democrática.
Nesse sentido, o Curso de Português para Mulheres Migrantes é fruto de uma iniciativa social, iniciada em 2017, que promovia o ensino individualizado e voluntário da língua portuguesa a mulheres vítimas de violência doméstica e/ou em situação de vulnerabilidade social, como forma de contribuir para a sua emancipação e a sua reintegração na sociedade. Em 2018, essa iniciativa social foi reestruturada como uma frente de ação do Coletivo Cio da Terra, responsável por conceber um projeto de ensino de português como língua de acolhimento (PLAc) para turmas de mulheres migrantes, articulado com outras frentes do coletivo – assistência social, geração de renda e formação sociopolítica para as mulheres.
O incentivo à socialização de imigrantes e refugiadas em turmas de PLAc, motivado por reflexões advindas da própria prática de ensino, tornou-se algo fundamental para contemplar a dimensão identitária e social que o ensino-aprendizagem da língua assume em um contexto de deslocamento. Por isso, pensar um projeto pedagógico conduzido por uma abordagem transversal que privilegie temas ligados às vivências das mulheres e às experiências migratórias assume hoje um papel central nessa missão de ensinar, valorizando o protagonismo das próprias mulheres em suas trajetórias de vida e buscando assegurar seu lugar de fala na sociedade que as acolhe – não como um gesto benevolente, mas como um direito que lhes cabe.
Afinal, é a partir do compartilhamento de narrativas que atravessam a(s) condição(ões) do ser mulher migrante que muitas delas se (auto)reconhecem e encontram uma rede legítima de apoio e de afeto entre si. E é por meio dessa missão que o Curso de Português do Cio da Terra alcança, em tempos de distanciamento físico e formação de laços virtuais de acolhimento, mais de 140 alunas e mais de 60 voluntárias, em diversos lugares do Brasil e do mundo, ressignificando o propósito de ser terra fértil sem fronteiras.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
FARIA, Bárbara Mano de. “Reflexões sobre ensino de português e acolhimento de mulheres migrantes”, em Revista Ponte, v. 1, n. 6, ago. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/reflex-ensi-port-acolhi-mulh-migra
Bárbara Mano de Faria é mestre em Estudos Linguísticos / Análise do Discurso, com ênfase no estudo das representações sociodiscursivas de imigrantes e refugiados, e graduada em Letras – Licenciatura Português/Francês pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo feito parte de seus estudos de graduação na Université Sorbonne Nouvelle – Paris III. Aprendiz e atuante no Ensino de Português como Língua de Acolhimento (PLAc) desde 2017, é idealizadora, professora e coordenadora do Curso de Português para Mulheres do Coletivo de Mulheres Migrantes – Cio da Terra.
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