Nesta resenha, a pesquisadora Pollyanna Vecchio nos apresenta a obra "Bibliodiversidade e Preço do Livro", publicada pela Ateliê Editorial e organizada por Marisa Deaecto, Patrícia Sorel e Lívia Kalil. Esta obra apresenta reflexões importantes sobre a implementação de uma política de regulamentação do preço do livro em tempos de e-commerce (Lei Cortez). O livro reúne textos escritos por palestrantes do “Simpósio Internacional por uma Lei da Bibliodiversidade”.
Fonte: Pexels
Em outubro de 2021, aconteceu o “Simpósio Internacional Por uma Lei da Bibliodiversidade”, evento virtual e bilíngue promovido em parceria por organizações do Brasil e da França para discutir a experiência francesa com a Lei do Preço Único para livros (Lei Lang) e a perspectiva de adoção de legislação similar no Brasil (Lei Cortez). O evento reuniu pesquisadores, livreiros, editores e outros profissionais do livro dos dois países, incluindo agentes do poder público e representantes de entidades ligadas ao livro.
Um dos resultados do encontro foi a obra "Bibliodiversidade e Preço do Livro" (Ateliê Editorial, 2021), organizada por Marisa Midori Deaecto, Patrícia Sorel e Lívia Kalil. Trata-se de textos escritos por alguns dos palestrantes que ampliaram e aprofundaram suas falas e as transformaram nos artigos e relatos de experiência que compõem o livro. Traz também uma edição crítica do Projeto de Lei do Senado 49/2015, de autoria da então senadora Fátima Bezerra, com o objetivo de instituir a política nacional do livro e a regulação de preços no Brasil.
Apresentado seu contexto de surgimento, cumpre esclarecer e discutir os dois conceitos fundamentais para a obra e entorno dos quais todos os textos orbitam: a bibliodiversidade e a lei do preço fixo para livros. Em alusão ao conceito ecológico da biodiversidade, a bibliodiversidade é a existência necessária de uma diversidade cultural de livros e outros produtos editoriais, garantida não só pela publicação de mais títulos e autores, mas principalmente pela existência de uma variedade de pontos de vendas (livrarias) e de editoras não ligadas a conglomerados multinacionais e que se comprometem com conteúdo do que publicam, de forma a oferecer oposição ao fenômeno da bestsellerização.
Um obstáculo para a bibliodiversidade são os monopólios e oligopólios de vendas de livros criados por grandes empresas varejistas (como redes de supermercados) e, contemporaneamente, por empresas multinacionais de e-commerce (notadamente a Amazon). Esses “mastodontes”, como os denomina a pesquisadora Marisa Midori na apresentação da obra, forçam acordos comerciais com editoras e vendem livros com descontos insustentáveis para os demais agentes, monopolizando o setor e levando pequenas, médias e até grandes empresas especializadas no mercado livreiro à falência.
Assim, a Lei do Preço Fixo seria uma forma de evitar a formação de monopólios e oligopólios, analogamente às leis antitruste e antidumping norte-americanas. A forma como a legislação existe na França e como se propõe a existir no Brasil é simples: fixação, por parte da editora, do preço de seus livros impressos ou digitais durante um ano após o lançamento. Os descontos não poderiam passar de 10% para vendas comuns, excetuando-se as vendas para o poder público. Não se trata de prática incomum, visto que jornais e revistas já possuem preço de capa impresso. Também não seria exclusividade brasileira, já que, além da França, diversos outros países já aprovaram lei semelhante a fim de protegerem o livro como bem cultural, promoverem a bibliodiversidade, o fomento à leitura e a igualdade de condições para pequenos empreendimentos, como as livrarias de rua.
A obra se divide em quatro seções. As duas primeiras trazem artigos de pesquisadores brasileiros e franceses com diferentes perspectivas em torno do tema. A terceira seção é composta por relatos de vida e de experiências de profissionais do livro. A quarta seção é um epílogo onde podemos encontrar a transcrição do discurso proferido no evento pelo Senador Jean Paul Prates, atual responsável pelo projeto da Lei Cortez no Senado, além da apresentação do contexto histórico do referido projeto feita por Ricardo Borges e a já mencionada edição crítica do PLS 49/2015.
Os textos que compõem as seções de artigos começam com uma mensagem de Jack Lang, ex-ministro francês homenageado com o nome da lei do país por ter sido figura fundamental para sua aprovação em 1981. Na sequência, dois pesquisadores analisam o caso francês: Jean-Yves Molier faz um balanço das mutações do livro e do advento da Lei Lang nos últimos quarenta anos; e Patrícia Sorel analisa as repercussões da lei sob o prisma dos profissionais do livro na França.
Na sequência, três pesquisadores brasileiros comparam a experiência francesa com a perspectiva de adoção de lei similar no Brasil. Vitor Tavares, atual presidente da Câmara Brasileira do Livro, conta como a entidade atua no Brasil para a defesa da bibliodiversidade; Haroldo Ceravolo Sereza, atual diretor da Libre – Liga Brasileira de Editoras, fala sobre as políticas públicas do livro no Brasil e da necessidade de sua ampliação; Marisa Midori Deaecto faz uma comparação entre os 40 anos da situação da França com a Lei Lang, e a do Brasil, ainda sem a Lei Cortez.
Outras experiências de regulamentação de preços para livros vêm à baila nos artigos de Jean-Guy Boin, que traça um panorama das legislações a esse respeito no mundo, e de Nuno Medeiros, que analisa a experiência lusitana. Ana Elisa Ribeiro contribui com um estudo sobre o controvertido conceito de livro diante das tecnologias digitais e suas consequências para a bibliodiversidade. João Varella fala sobre a permanência do livro diante de mudanças tecnológicas e relata suas experiências com a editora Lote 42, a livraria Banca Tatuí e a feira Miolos. Paulo Verano avalia o papel das editoras em um cenário cada vez mais ambivalente, contando sua perspectiva como pesquisador, ex-gestor de grandes casas editoriais e atual editor independente.
Marília de Araújo Barcelos fala sobre hábitos de leitura de estudantes universitários no contexto da crise sanitária mundial e o impacto da pandemia no mercado livreiro. Igor Venceslau discute a importância da manutenção dos Correios como empresa pública para garantir tarifas especiais para postagem de livros e logística de distribuição em todo território nacional.
A terceira seção traz relatos de experiências e perspectivas sobre o panorama atual do mercado editorial, da bibliodiversidade e da fixação de preços por parte de sete profissionais do livro. São eles: Bernardo Gurbanov, livreiro, editor e atual presidente da ANL – Associação Nacional de Livrarias; Rui Campos, diretor-fundador da Livraria da Travessa; Larissa Mundin, escritora e editora-fundadora da Nega Lilu; Adalberto Ribeiro, fundador da Livraria Simples; Vitor Tavares, diretor da Distribuidora Loyola e atual presidente da CBL; Marcus Teles, presidente da rede de Livrarias Leitura; e Alexandre Martins Fontes, diretor executivo da Editora WMF Martins Fontes e da Livraria Martins Fontes Paulista.
No epílogo, em seu discurso e entrevista, o senador Jean Paul Prates esclarece questões objetivas sobre os trâmites a que o PLS 49/2015 deverá ser submetido até ser aprovado, os entraves que o contexto político atual tem criado para sua tramitação, além do advento da pandemia como um empecilho para a dedicação do Senado e da Câmara a questões consideradas menos urgentes. Também explica sobre a mudança do nome do projeto para Lei José Xavier Cortez (ou Lei Cortez), no lugar de Lei do Preço Comum, a fim de homenagear o livreiro e editor potiguar fundador da Livraria Cortez, falecido em 2021. Segundo o senador, além de amenizar a pecha intervencionista a que o nome anterior parecia remeter, o nome humanizado sensibiliza mais as pessoas e fica mais palatável e argumentável, a exemplo das recentemente aprovadas Lei Aldir Blanc e Lei Paulo Gustavo.
Diante de uma variedade de gêneros e certa desproporção de aprofundamento dos textos, houve um exímio trabalho editorial que fez com que as seções ficassem muito bem-organizadas e que a obra se tornasse uma espécie de catálogo, com a mesma diversidade de vozes, estilos e pontos de vista presentes no evento, refletindo exatamente o conceito de bibliodiversidade que estava sendo defendido.
Duas críticas podem ser feitas, uma à obra e outra à própria Lei Cortez. Em relação à obra, careceu que a ideia de preço fixo fosse mais bem conceituada desde os textos introdutórios, para que o leitor caminhasse com mais clareza ao longo dos artigos. Embora vários autores tenham mencionado tanto a lei francesa quanto o projeto para a lei brasileira, poucos são os que esclareceram seu funcionamento mais objetivamente. Para melhor entendimento da questão, o leitor poderá pesquisar em outras fontes antes de iniciar a leitura ou ir direto ao texto do PLS 49/2015, que se encontra no final da obra.
Em relação à Lei Cortez, embora entendamos que o projeto precise ser tramitado o mais rápido possível, que já houve considerável debate com diversos setores da sociedade, e que mais adendos ao texto demandariam regressos em trâmites já vencidos, é preciso admitir que o projeto carece de melhores especificações sobre questões que envolvem o livro digital, sobretudo a existência dos cada vez mais populares streamings de leitura, ou seja, aplicativos como Kobo e Kindle, que oferecem leitura ilimitada de ebooks em troca de pagamento de assinatura por parte do leitor.
Nos contratos para publicação e venda de ebooks por intermédio dessas bibliotecas digitais de empresas multinacionais de tecnologia (sobretudo a “mastodonte” Amazon), também há cláusulas abusivas que forçam a redução de preços das obras e até mesmo a exclusividade de venda pela plataforma, levando ao sucateamento do trabalho de autores e editoras e ao monopólio de venda e circulação de ebooks. Trata-se de um assunto novo e pungente que infelizmente não está contemplado pela Lei Cortez.
Afora essa crítica, é uma lei necessária e urgente. O livro e o evento que a debateram são iniciativas louváveis de usar o conhecimento que se produz na academia para a transformação social e política em nosso país. Trata-se de leitura obrigatória para estudantes e pesquisadores da área da Edição, para todos os profissionais do mundo do livro e mesmo para os demais leitores interessados no futuro do livro e da leitura no Brasil.
Esta publicação é fruto de uma parceria com o projeto de extensão Aula Aberta, do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). O projeto Aula Aberta tem a finalidade de oferecer aulas e palestras abertas à comunidade, para qualquer pessoa que se interessar pelo tema a ser debatido entre palestrantes convidados e público.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
VECCHIO, Pollyanna de Mattos Moura. “Resenha: Bibliodiversidade e Preço do Livro”, em Revista Ponte, v. 2, n. 10, ago. 2022. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/resenha-bibliodiversidade-pre%C3%A7o-livro
Pollyanna de Mattos Moura Vecchio possui licenciatura dupla em Letras (Português/Italiano) pela UFMG, extensão universitária pelo Oakton College de Chicago e mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG, onde atualmente cursa doutorado na área de Edição e Tecnologias Digitais. Seu foco de pesquisa é a autopublicação em plataformas digitais. Tem estudos publicados sobre plataformização do trabalho e da produção cultural, especificamente sobre o impacto da plataforma Amazon Kindle Direct Publishing no mercado editorial brasileiro.
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Referências:
DEAECTO, Marisa Midori; SOREL, Patricia; KALIL, Lívia (orgs.). Bibliodiversidade e Preço do Livro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2021. 308 páginas.
Para conhecer o Projeto de Lei do Senado 49/2015 (Lei Cortez): https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/119760
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