Neste ensaio, o professor e pesquisador Paulo Caetano apresenta as linhas gerais de uma pesquisa que visa analisar a cidade como um projeto biopolítico, isto é, um programa para o controle de corpos e pulsões, de gestão da vida e da morte.
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“A rua em torno era um frenético alarido”
A uma passante.
(BAUDELAIRE, 1985, pág. 361).
A concepção de uma cidade se dá na processualidade: sempre em modificação, a paisagem urbana é amálgama de vetores. Necessidades várias se encontram na concepção de uma rua, praça, parque, passarela, prédio. Mais do que o pragmatismo de permitir o deslocamento de indivíduos, fazer estes se (des)encontrarem, protegê-los das intempéries etc., o espaço urbano é canalização de demandas pertinentes, neuroses contundentes, com algumas aspirações estéticas – sendo, não raramente, difícil determinar quando começa uma e termina a outra.
O entorno heteróclito dos grandes centros ao mesmo tempo que bafora, de um lado, cosmopolitismo que enseja diversidade, serviços saciadores e segurança, de outro lado, ecoa cenários distópicos, os quais produzem anonimato vertiginoso, pobreza e insegurança – na melhor das hipóteses. Na pior delas, os sistemas socioeconômicos hegemônicos produzem miséria e cidades ansiogênicas, ondem pululam seres semiviventes, autômatos massacrados por Estados e corporações.
Nessa ambivalência, hiperestímulos são uma das tônicas desde a abertura da modernidade, como mostrou Walter Benjamin (1994) lendo “A uma passante”, de Charles Baudelaire:
A profusão das massas, a pressão do tempo, a explosão de sons e imagem, bem como o adensamento demográfico produziria embotamento, perda do senso de comunidade e aumento da dispersão.
Dificilmente o aparelho psíquico lidaria bem com o advento e percepção da grande cidade àqueles que eram provincianos, os quais tinham a previsibilidade da paisagem cristalizada no contínuo da formação subjetiva. O progresso e a guerra, para o filósofo alemão, são máquinas de destruição, não “apenas” da paisagem, mas também da subjetividade, instâncias produtoras da experiência de choque.
Como a ideia de progresso acarreta miséria, com frequência, essa mazela pode gerar nalguns justificativa para crimes, os quais seriam combatidos por quem tem o monopólio da violência: o Estado. Essa tensão faz dos downtowns palco principal de violência e tensão. A fim de inibir diferentes agentes da violência, uma saída que as cidades encontraram foi a vigilância. Espécie de concretização da profecia orwelliana, câmeras são itens onipresentes e ubíquos na paisagem da urbis contemporânea. Todavia, diferentemente de 1984, a vigilância não se restringe a uma única instância reguladora, ao grande irmão: em vez de centralizador, o registro hoje é difuso, realizado por várias instituições e cidadãos, não apenas pelo Estado ou grandes corporações, ainda que estes detenham mais poder, estrutura e eficiência para tal. É como se os habitantes soubessem da moral foucaultiana (2018) do panóptico:
Nem sempre é preciso vigiar a cidade, mas, fundamentalmente, é preciso que ela produza a sensação de vigilância.
A biopolítica então fulgura como gestão dos corpos, a qual pode se dar de várias maneiras como, por exemplo, controle de natalidade, mortalidade, imigração, vigilância. Esta, no afã justificativo de gerar segurança, sobrepõe-se à paisagem, com relativa frequência, isto é, as câmeras não existem mais como item obtuso e camuflado, colocado na aresta de cômodos e muros, mas irrompem como expressão, práxis e materialidade subjetivadora da cidade, fazendo com que não apenas paredes ordinárias sirvam de suporte, mas também fachadas, artisticamente arquitetadas, sejam atravessadas pelo dispositivo. Isso gera curiosos cenários em que, por exemplo, fachadas de outrora, concebidas antes da sociedade da vigilância, sofram hoje com a intervenção biopolítica, como se houvesse, de pano de fundo, a máxima de que a arte vem em segundo plano diante da (sensação de) segurança.
Este ensaio visa, pois, apresentar um projeto de pesquisa o qual terá como um dos objetivos mapear em Belo Horizonte fachadas artísticas em que houve intervenção biopolítica ulterior na capital mineira. Dito de outro modo: o projeto registrará, via fotografia, fachadas de prédios públicos emblemáticos (como museus e centros culturais) onde houve instalação de câmeras nas fachadas, numa sugestão de que o pragmatismo biopolítico se sobrepõe ao projeto artístico, como se vê, por exemplo, nas fotos do Palácio das Artes (a seguir).
Essa será a primeira fase de um projeto que faz dialogar Arquitetura e Estudos Semióticos via Literatura, a fim de pensar a cidade em sua materialidade e virtualidade distópica. Nesse sentido, o ensino a partir da Literatura Comparada, com seu ímpeto de fazer encontrar diferentes gêneros e sistemas semióticos, pode ensejar uma reflexão sobre a cidade na medida em que romances e contos constroem verbalmente os espaços, fomentando a imaginação e uma visão ao mesmo tempo estética e perspectivizada. O cinema, por sua vez, cria a imagem em movimento, numa alusão mais próxima da experiência da visão diante do entorno; ali, como espectadores, somos espécie de voyeurs a visualizar a continuidade dos cenários, das cidades. Assim, textos literários (como Hilda Furacão, de Roberto Drummond) e fílmicos (como O homem da multidão, dirigido por Cao Guimaraes) que se passam em Belo Horizonte possibilitam discutir o mal-estar na pólis, tendo em vista o achado freudiano, de 1928, de que a vida na civilização demanda repressão de estímulos internos e, por isso, gera mal-estar. O advento da multidão, a dificuldade em lidar com o anonimato, as pulsões canalizadas, as tensões oriundas do sistema socioeconômico são aspectos que esses objetos abordam e que iluminam as fachadas, esses muros ornados, antes com aspirações estéticas e, agora, com demandas biopolíticas.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
CAETANO, Paulo. “Vigilância nas fachadas”, em Revista Ponte, v. 2, n. 7, out. 2022. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/vigilância-nas-fachadas
Paulo Roberto Barreto Caetano é professor de Literatura e Outros Sistemas Semióticos na Unimontes, doutor em Teoria da Literatura pela UFMG. Autor de Sul do chão (contos, 2010), Achados avulsos (2019, ensaios).
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Referências bibliográficas
BAUDELAIRE, Charles. A uma passante. In As Flores do mal. Edição bilíngue.
Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. São Paulo, SP: Brasiliense, 1994.
CAETANO, P. R. B. Cota zero e hiper-estímulo: Literatura como resposta ao real (uma possibilidade). In: Ensaios, orelhas e prefácios. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
DRUMMOND, Roberto. Hilda Furacão. São Paulo: Editora ARX, 2003. 298p.
FOUCAULT, M. (2018). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
O HOMEM DAS MULTIDÕES. Cao Guimarães e Marcelo Gomes. 2013. Colorido. 95 min. Produção Cinco em Ponto e Rec Associados. Disponível em https://www.caoguimaraes.com/obra/o-homem-das-multidoes/ Acesso em 1 de setembro de 22.
ORWELL, George. 1984. Tradução Wilson Velloso. 29. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.
Fotografias: Paulo Caetano
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