Neste relato, a professora Márcia Cunha compartilha conosco a experiência de visitar a escola em plena pandemia, em pleno ensino remoto, momento a partir do qual conseguiu tecer reflexões sobre o lugar da educação na vida de cada um/a de nós.
Sou professora há mais de dez anos e atualmente trabalho na Rede Municipal de Belo Horizonte e na Estadual de MG. Nesta pandemia, visitei a escola municipal em que trabalho, para levar doações a alguns alunos carentes que se encontram em situações difíceis, após a última chuva. Sendo assim, tive a oportunidade de entrar no prédio o qual se encontra fechado para a comunidade escolar, desde fevereiro do ano passado. Resolvi relatar a experiência e as percepções que tive a partir deste dia, as quais produziram em mim sentimentos variados, entre angústias e saudades, esperanças e o mais importante: a consciência da importância que o meu ofício representa em minha vida.
Ao atravessar o portão da escola e estacionar o carro onde costumava deixá-lo, levei as doações para a secretaria. Encontrei colegas que ali estão desde o início da pandemia, fazendo revezamento na parte administrativa da escola. De máscaras, sorrimos mas com os olhos denunciando certa angústia, comum a todos nós, creio eu, em virtude do contexto.
Depois, passei a caminhar pelo pátio vazio. Observei as salas fechadas e, pela primeira vez, “ouvi” o silêncio da escola. Não aquele silêncio do “entre turnos”, mas o silêncio angustiante e triste de uma escola sem alunos e professores. Cheguei à conclusão de que, queiramos ou não, a maior parte da nossa vida, sob todos os aspectos, está ali dentro: naquele prédio, naquele pátio, naquelas salas. Dentro da escola.
Há um ano, nos encontrávamos em um cotidiano intenso, massivo, lotado de compromissos profissionais e desafios dos mais variados, os quais nos tomavam os sentidos por completo, ao ponto de não nos enxergarmos fora da escola. Afinal, qual professor ou professora que involuntariamente, em uma reunião de família, não faz menção a algum aluno ou a algum caso ocorrido em sala de aula? E as reuniões dos colegas fora da escola, onde o tema das confraternizações gira em torno de assuntos relacionados ao nosso ofício docente? É o aluno indisciplinado, são as datas festivas, as avaliações, enfim, nossa conversa dá voltas e sempre retorna à escola. A vida dos professores e professoras, sem dúvida, possui um vínculo inquestionável com as instituições de ensino e toda a dinâmica que envolve o exercício de ensinar.
No entanto, no contexto da pandemia, fomos obrigados a sair da escola por um tempo muito longo e por motivações muito diferentes das férias ou recessos. Fomos obrigados a fechar os portões e esperar em casa o momento de voltarmos para o lugar que, para nós, professores, desde que assumimos nosso ofício, é o nosso lugar referência.
Tivemos que nos reinventar. Não no sentido profissional, pois o ofício docente é um desafio constante e aquele que conserva um método ou uma forma de educar sucumbirá ao ostracismo em meio à multidão de alunos e às transformações do mundo. Desta vez, tivemos que nos reinventar como seres humanos.
Acredito que a maioria das relações construídas por professores, além das familiares, foi surgindo a partir de compromissos com estudos e com a profissão de professor(a). Ou seja, nós, os profissionais da educação, temos um diferencial em relação a outras profissões. Nós, professores, nunca saímos da escola. Desde os anos iniciais à graduação e ao exercício do ofício, permanecemos dentro dela, participando de toda sua dinâmica, diferente das outras profissões que se formam a partir da escola, mas seguem seu caminho. Nós não... para nós, a escola é o lugar da permanência.
Mas, de repente, tivemos que deixá-la como quem deixa uma casa durante um terremoto ou uma guerra. Não tivemos tempo de organizar nosso armário, nem jogar papéis velhos fora. A garrafinha de água ficou na pia da sala dos professores e estão lá até hoje, sem água, aguardando a nossa volta. Fomos surpreendidos pela pandemia como quem é surpreendido por uma bomba. Tivemos que sair e não voltar. Ficamos em casa. Estamos em casa há um ano, sem contato com o prédio, sem contato com o barulho das salas de aulas.
No início, era inovador! Tínhamos que nos adaptar às tecnologias, tínhamos de criar formas de alcançar os alunos e seus familiares: reuniões todos os dias, discussões de como usar a internet a nosso favor. Víamos ideias sensacionais de colegas engajados e otimistas. Falávamos a respeito do uso dos celulares pelos alunos. Finalmente, iriam usá-los para fins escolares, aqueles mesmos celulares que povoavam as salas de aula, escondidos embaixo das carteiras e que, durante as aulas, eram usados para acessar o Facebook ou o Instagram e que nos tiravam do sério...
Foi motivador! A experiência de cumprir nosso horário em casa, ao lado dos nossos filhos, almoçando a nossa comida! Posso dizer que foi um desafio gratificante, apesar dos sérios motivos que nos obrigou a este contexto. No entanto, o tempo passou. Começamos a entender que o convívio, aquele que fundamenta as nossas relações, foi limitado a uma espécie de “isolamento”. Fui obrigada a viver em isolamento, longe de tudo aquilo que muitas vezes me deixava esgotada, outras vezes, irritada, e por outro lado, feliz e cheia de expectativas de dias melhores. E agora, todos, sem exceção, buscam compreender o momento, sugerem alternativas tecnológicas para alcançar alunos de longe, de fora da sala de aula, onde até então tínhamos o controle, ou achávamos que tínhamos esse controle.
Foi quando, em uma dessas reuniões, recebi a triste notícia do falecimento de um dos meus alunos da rede. Um aluno "problemático", envolvido com ilicitudes, mas que conversava sempre comigo e havia me prometido dedicar-se à escola e mudar de vida. Foi assassinado no horário em que estaria em sala de aula. Ocorreu desde então um “divisor de águas”: a professora do antes e a do pós-pandemia.
A de antes, engajada com a vida do aluno muito antes de seu desempenho como estudante. A professora brava, mas que olhava preocupada os braços dos alunos quando apareciam cobertos por blusas de frio em meio ao calor estarrecedor, procurando marcas ou coisas parecidas. Aquela professora que trabalhava em praticamente 3 turnos, com alunos de faixas etárias totalmente diferentes, mas que os via como crianças em todos os aspectos, carentes de informações, de direcionamento para a vida! Carentes de cuidado, de serem vistos como alguém importante!
Agora, limitei-me à professora que participa de reuniões virtuais. Pouquíssimo ou quase nenhum contato com alunos, uma vez que muitos não têm acesso à internet. Sou a professora que elabora atividades e que tenta, de alguma forma, facilitar a compreensão deles ao lerem mas que sabe que, no fundo, o material humano não é substituível e minha palavra está fazendo falta. Sei que meu olhar está fazendo falta. Meu sorriso, minhas lições de “moral”. Meus argumentos, minha “andadinha” no corredor. O meu visto no caderno, meus bilhetes para os pais. Meu apoio, meus questionamentos. O meu afeto.
Sinto falta de tudo. Da bagunça, do arrastar das carteiras. Do cheiro de comida da cantina. Dos gritos dos alunos na aula de educação física. Das plantas do jardim. Do zelador que abria a porta da sala de vídeo pra mim. Das “meninas da limpeza”. Dos gatos perdidos no estacionamento. Da indisciplina dos alunos. Do olhar deles enquanto eu chamava a atenção. Do sorriso quando eu demonstrava afeto e vínculo...
Nós, professoras e professores, reclamamos muito das nossas condições de trabalho, é fato. Afinal, somos desvalorizados pelos governos e também pela sociedade. E creio que a sociedade brasileira não tem ainda a noção exata da importância do nosso ofício e de como ele se fundamenta na humanização para a formação integral do indivíduo. Mas, ainda assim, devemos ter a consciência de que o nosso ofício é tão importante quanto nossa própria vida e as vidas daqueles a quem o destinamos. O nosso trabalho reflete sobremaneira no que somos e no que desejamos para o mundo.
Somos forjados nas sensibilidades, no conhecimento, no intercâmbio de emoções. Nosso ofício vai muito além de técnicas e não se fundamenta em cálculos ou em conhecimento pragmático. Trabalhamos diretamente com a mente e o coração das pessoas... coração no sentido das sensibilidades para a formação de caráter, sensibilidades agenciadas em sala de aula. Trabalhamos a socialização do indivíduo, a preparação para o mundo dinâmico, onde há milhares de possibilidades e, ao mesmo tempo, há muitas regras e limitações impostas pelos mais diversos processos da vida humana. Trabalhamos com diversas visões de mundo e, quando estas são nocivas, tratamos de iluminar a mente com o reconhecimento das diferenças para extinguir a indiferenças. Trabalhamos para construir e manter o que há de mais importante dentro de uma sociedade: a alteridade, a empatia e o respeito, exatamente nesta ordem. E a pandemia tenta nos enfraquecer. Tenta nos subjugar e nos fazer acreditar que o contato humano não é insubstituível. Não é verdade. O contato humano e a convivência social construtiva não são substituíveis. Não há rede virtual nem programas que possam fazer o nosso trabalho. Não há possibilidade de humanizar o conhecimento sem o ser humano.
Há um ano estamos longe de casa. Há um ano estamos longe dos nossos. Mas esse tempo todo foi necessário para perceber o quanto sou da escola. O quanto ela faz parte da minha vida e o quanto acertei na escolha da profissão.
De certo forma, apesar de tudo, apesar de todas as perdas nesta pandemia que parece não ter fim, foi possível me refazer e me fortalecer. E hoje, mais que nunca, posso dizer com toda certeza: sou professora, com muito orgulho sim senhores!!!
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
CUNHA, Marcia Fernandes da. “Uma visita à escola em plena pandemia: reflexões sobre o nosso lugar”, em Revista Ponte, v. 1, n. 3, mar. 2021. Disponível em: https://www.revistaponte.org/post/visita-escola-plena-pand-nosso-lugar
Marcia Fernandes da Cunha é graduada em História e mestranda em Educação e Docência pela FAE/UFMG, onde desenvolve pesquisa na linha "Educação em Museus e divulgação científica". É pós-graduada em "História e política Africana", professora de História do ensino fundamental e médio nas Redes Municipal e Estadual e Minas Gerais. É autora do blog História Corrente.
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